Anita Ugarte – Uma mulher com coragem de se olhar diferente

Via Raul Longo.

Jahiro estava vendo o Raul Castro discursando. Eu não estava prestando atenção. De repente ele fala “olha, não é o Lula?”. Eu olhei e era o Lula, abraçando o Raul Castro.

Eu não compactuo dessa onda de adoração de figura pública. Votei no Lula, provavelmente em 2018 votarei no Lula, mas não tenho nenhum pôster dele no meu quarto. Pra mim a figura pública, ainda mais na área da política, é digna da minha admiração enquanto se conduz de uma maneira que eu considero que atende às minhas expectativas.

Mas o Lula, ele dá muito o que pensar. Aliás, o Lula não: as reações das pessoas ao Lula.

Esse texto não é sobre política. Esse texto não é nem sobre o Lula. Você verá.
Eu já ouvi de mais de uma pessoa – gente legal, inteligente – o seguinte comentário: “eu detesto o Lula, não sei nem bem por que, mas eu tenho horror a ele”. Para e pensa como isso é estranho. Alguém detestar um político sem ter um porquê preciso. Se você me perguntar por que eu detesto o Bolsonaro, eu vou ter razões bem definidas pra te dar. Eu detesto ele por declarações homofóbicas que ele fez. Eu detesto ele pelo elogio ao Ulstra. Detesto pelo que ele prega. Então como é que pode alguém odiar o Lula assim, abstratamente?

Pode desse jeito: o ódio ao Lula, na verdade, é o ódio ao pobre. O nosso velho, disfarçado, herdado ódio ao pobre. Ao pobre que teve a cara de pau de sair lá do barraco dele e vir aqui, pro meio da gente, falar conosco cara a cara, como se fosse um de nós.

Se tem uma coisa que a gente não suporta, que não admite de jeito nenhum, é que o pobre resolva ser um de nós. Porque a gente tem certeza absoluta de que ele não é.

E por isso a gente não almoça junto com a empregada, não senta à mesa com ela. Por isso que ela não usa o nosso banheiro – e a gente fica muito puto se descobre que ela usou escondido e limpou a mão com o nosso sabonete líquido chique, que a gente trouxe de viagem. Por isso a gente conversa em inglês na frente dela, que é pra ela não entender. E no natal a gente compra pra ela um presentinho, compra qualquer coisa que tá bom. A gente, na verdade, gosta mais dela do que daquela nossa amiga enjoada, do que daquele parente babaca – mas ainda assim o presente deles não vem da Leader Magazine, que isso, evidentemente, seria uma ofensa. O papelzinho que o fodido tá distribuindo debaixo do sol, isso a gente só pega se estiver a fim; a rifa do conhecido pentelho a gente compra por obrigação. Na caixinha da moça da limpeza, que sempre agiu com gentileza e com simpatia, a gente põe o que tiver, se tiver; pra vaquinha pro presente de casamento daquele colega escroto a gente vai ao banco tirar dinheiro. O cachorrinho de rua, pobrezinho, a gente faz festinha nele, dá a ele um pedaço do que a gente estiver comendo, dá tudo logo, quer levar pra casa, que dor no coração; da criança que vem pedir qualquer coisa, a gente se esquiva, olha pro lado, não deixa que ela encoste com aquelas mãozinhas sujas. Admite: é mais fácil você passar a mão em pêlo de vira-lata do que em cabeça de criança de rua, aqueles cachos endurecidos de sujeira, aquele não cabelo. Você tem nojo, tem medo de pegar doença.

A gente odeia o pobre. O pobre o preto o nordestino o travesti o pivete. Tudo que a gente faz de bom pra essa gente, faz pra ir pro céu, faz pra sentir as costelas quase arrebentando de tão grande que é esse coração nosso de classe média. Não faz porque eles merecem. Não faz porque são seres humanos. Não faz porque são nossos irmãos.

Não se engane não. Você é um filho da puta. Eu sou uma filha da puta. Aqui, na casa grande, não se salva uma alma.

Porque assim nós fomos criados. Assim nos educou nossa família. E isso vale ainda que sua família seja daquela estranha classe dos ricos com consciência social. De esquerda. Esclarecidos. Filiados àquele partido. Militantes durante a ditadura. Mas que não deixam a empregada sair mais cedo, mesmo tendo terminado o serviço, que é pra não acostumar mal.

E aí você aprendeu direitinho: pobre, a gente domestica. Pra não abusar. Não achar que tem direito a algo mais do que o que a gente quer dar. Não imaginar que é igual ao patrão. Não frequentar lugares que não são pro bico deles. Como shopping. Avião. Presidência da república.

Da próxima vez que você espumar vendo o Lula falar na tv, da próxima vez que debochar dum erro de concordância que ele cometeu, da próxima vez que você fizer piada com o dedo amputado dele – uma grosseria horrorosa que você não faria com mais ninguém – vai até o espelho e se olha. Enxerga o senhor de engenho revirando os olhos, puto, alucinado, enlouquecido pra pôr no tronco aquele escravo abusado. (Anita Ugarte)

Pintura: Alla, de Marc Chagall

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