Ângelo Cretã: O primeiro Vereador indígena do Brasil

No ano de 1976 ocorreram eleições municipais em todo o país, exceto nas capitais e em áreas de “segurança nacional” como as regiões fronteiriças, onde interventores eram nomeados pelos generais. O regime militar buscava legitimidade constitucional através de um simulacro de democracia, apoiado em um bipartidarismo imposto de cima para baixo. Neste panorama político de exceção os deputados e senadores da oposição viviam sob constante ameaça de cassação.
Ângelo Cretã aceitando um convite de um dos candidatos majoritários do MDB à prefeitura de Mangueirinha, o senhor Miguel Arlei Reis, optou pela legenda oposicionista e candidatou-se a vereador. Sua postulação foi questionada por políticos da ARENA e com ela sua cidadania plena, afinal Cretã era um índio Kaingang teoricamente sob tutela do Estado. Tamanha era a pressão sobre o jovem cacique, exercida inclusive pelo chefe do Posto, o senhor Isaac Bavaresco, que cumpria ordens vindas de Brasília. Todos estes obstáculos fizeram com que Ângelo chegasse a pensar em desistir de postular uma cadeira de vereador.
Este recuo estratégico foi temporário, uma atitude defensiva perante as ameaças vindas de políticos influentes, comprometidos com os interesses dos madeireiros. O projeto político pioneiro de Cretã também enfrentou oposição de dirigentes da FUNAI, que o enxergavam como uma afronta ao governo e suas diretrizes indigenistas fundamentadas na tutela sobre os índios. Mesmo vivendo uma situação paradoxal que negava seus direitos enquanto cidadão brasileiro, discriminado pelo fato de ser índio, o cacique Ângelo Cretã não abandonou seus planos. Com apoio da assessoria jurídica do Movimento Democrático Brasileiro, levou adiante sua postulação política. No dia 11 de janeiro de 1976, o jornal “Gazeta do Povo”, publica a seguinte nota:
SEGUNDO O JUIZ, ÍNDIO É CANDIDATO: O índio é candidato. Pelo menos o nome do cacique caingangue Ângelo dos Santos Souza Cretã está relacionado pelo juiz eleitoral Aroldo Antônio Clomb, da 101ª Zona Eleitoral de Coronel Vivida, como candidato pelo MDB à Câmara Municipal de Mangueirinha. A oposição concorre nesta cidade com 26 candidatos a vereadores, figurando o nome do cacique em terceiro lugar na relação encaminhada ao TRE. Para a Prefeitura, o MDB disputará com três candidatos: Miguel Arlei dos Reis, Edílson Linhares Serpa e Edson Luís Bini.
Com sua candidatura finalmente homologada pela Justiça Eleitoral, afinal ele era um cidadão brasileiro, alfabetizado, registrado em cartório e possuía título de eleitor, Ângelo Cretã inicia sua vitoriosa campanha. Neste episódio à condição de tutelados da FUNAI a que estavam submetidos os índios brasileiros, independente de seu grau de interação com a sociedade nacional foi efetivamente questionada. Inclusive com repercussão na grande imprensa nacional, que noticiava acontecimentos envolvendo um cacique Kaingang, da longínqua e pequena (e empobrecida) cidade Mangueirinha.
A atitude ousada de Ângelo Cretã, que fez valer sua cidadania brasileira exigindo legalmente seus direitos políticos, levou o Poder Judiciário a ter que arbitrar sobre a questão da tutela indígena. A divulgação deste acontecimento nos jornais e na televisão, fez com que a opinião pública refletisse sobre o assunto, e por extensão a respeito da condição dos povos indígenas no Brasil. Depois da eleição de Ângelo Cretã, muitos outros índios candidataram-se e ganharam espaços na cena política brasileira, com destaque para o cacique Xavante Mário Juruna em 1978, o único índio (até hoje) a conquistar uma vaga como deputado federal no Brasil, sendo eleito pelo Rio de Janeiro.
Pelo fato de possuir um bom relacionamento com pequenos produtores agrícolas da região para quem já havia prestado serviços e também auxilio (muitas vezes emprestou o trator dos índios para seus vizinhos brancos), Ângelo conquistou amigos, parceiros e votos. Nas sete aldeias de Mangueirinha seu nome era unanimidade, inclusive entre os Guarani, fato raro de ocorrer em virtude do próprio faccionalismo Kaingang e das divergências inter-tribais.
Ângelo Cretã foi eleito em 15 de novembro de 1976, com 170 votos o primeiro vereador indígena do Brasil, uma situação inusitada que revelava a posição subalterna em que foram colocados historicamente os índios na sociedade brasileira. Apenas no final do século XX, quase 500 anos após a “descoberta do Brasil” um índio declarado assumia um cargo público eletivo no país. Na época Mangueirinha contava com 7.205 eleitores, e o MDB obteve 3.125 votos (43,40 %) contra apenas 2.036 da Arena (28,28%), elegendo prefeito o senhor Miguel Arlei dos Reis. De modo que na cidade de Mangueirinha um cacique Kaingang foi ungido pelas urnas vereador da base aliada do prefeito eleito, uma situação bastante favorável politicamente. Estes fatores foram fundamentais para um maior acesso às benesses das políticas públicas de saúde, educação, transporte e investimentos em infra-estrutura (pavimentação de estradas rurais, saneamento básico, construção e manutenção de escolas) na reserva indígena. Mas seu mandato terá relevância sobre tudo quanto a própria representatividade e visibilidade dos índios não apenas em Mangueirinha, mas em todo o Paraná e na região sul do Brasil.
Como vereador Ângelo trabalhou pela instalação de um posto de saúde descentralizado do INPS na Terra Indígena, benefício por ele conquistado. Como igualmente realizou esforços visando o asfaltamento da BR-277, estrada que liga Palmas à Mangueirinha e conseguiu a edificação de uma escola para a comunidade indígena. Na Câmara de Vereadores, Ângelo participou ativamente da “Comissão de Redação e Justiça”. O vereador Cretã argumentava aos seus pares de parlamento municipal para que aprovassem projetos de implantação de redes de água e esgoto nas aldeias e na periferia da cidade. Em seus discursos oficiais e projetos encaminhados como vereador o cuidado com o meio ambiente e a preservação da Natureza aparecem com freqüência. Bem como o apoio ao desenvolvimento social e econômico da região, por exemplo: ele defendeu em plenário a proposta de expansão da rede de energia elétrica da COPEL às pequenas propriedades rurais e igualmente para as comunidades Kaingang e Guarani.
O senhor Francisco Custódio do Amaral, taxista aposentado, foi também vereador naquela legislatura, tendo sido eleito pela ARENA. Chiquinho do Amaral como é conhecido popularmente em Mangueirinha, falou à respeito de seu colega Cretã:
A gente foi eleito em 1976 para um mandato de seis anos, e o Ângelo Cretã foi um grande amigo da gente, geralmente em dias de reunião ele vinha sempre em casa para discutir os projetos. Ele foi um vereador muito atuante, com alguns projetos referentes a área indígena. (…) Aquele tempo era pouco eleitorado, mas deu trabalho por que não tinham estradas e para ir para o interior era a base de correntes, até por sinal Mangueirinha evoluiu dali para cá. Era unida a Câmara, eu entrei com 58 projetos de estradas, pontes e escolas, e ele foi um dos vereadores que me ajudou muito. Inclusive ele também na área dele indígena ele entrou com alguns projetos, como construção de escola por lá. E a gente ajudou ele também, e o prefeito era o Miguel Arlei Reis. Ele era do MDB e eu fui eleito pela ARENA, mas era tudo de acordo. (…) A gente lutou com tudo, aquele tempo estava tudo iniciando, Mangueirinha não tinha nem bandeira, eu indiquei a pessoa para fazer o hino. A arrancada do progresso de Mangueirinha foi ali, foi feita escolas a cada seis quilômetros. (…) Ele dava um apoio nos projetos que eu entrava, e eu apoiava os dele na área indígena, projetos de águas da SANEPAR, asfalto, levar o INPS.
O depoimento de seu Chiquinho do Amaral, coincide com o de outras pessoas com quem conversei na Câmara de Vereadores e na área indígena, quanto ao fato de Ângelo ser bastante participativo. Em sua vereança Cretã articulava-se com seus colegas para aprovação de projetos que beneficiassem as aldeias onde era o cacique, bem como apoiava iniciativas que trouxessem melhorias para a cidade como um todo. Alguns indíos contemporâneos seus, descreveram-me cenas de Ângelo saindo direto da roça para reuniões na prefeitura, com as roupas suadas e marcadas pela terra. Mas além de participar ativamente das questões políticas locais, Cretã utilizou sua legislatura para defender a causa indígena (especialmente a desintrusão de suas áreas) junto às autoridades municipais, estaduais e federais.
Como vereador e cacique, Ângelo ganhava maior representatividade em suas viagens à Brasília e Curitiba, em busca de políticas públicas e recursos para o desenvolvimento das comunidades indígenas meridionais.
A vitoriosa trajetória política do cacique Cretã, tornou-se um marco referencial na memória viva dos índios de Mangueirinha, assim como sua postura honesta, corajosa e participativa.

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