Alpinistas, autorias contestáveis e ficcionalidades na escrita científica no Brasil

Foto: Nappy

Por Elissandro Santana, para Desacato. info.

Há muito tempo a universidade brasileira me intriga em diversos aspectos, mas, nos últimos anos, para além dos egos inflados, o que mais me deixou e me põe perplexo, é a falta de ética em torno da prática de publicações a partir de autorias contestáveis de indivíduos que, na sede por crescerem academicamente, pegam carona, descaradamente, em decorrência da posição de poder que assumem, em trabalhos de graduandos ou de pós-graduandos com alto potencial de pesquisa e de publicação, geralmente, estudantes com muito gás científico logo no início das pesquisas nos programas de iniciação científica na graduação ou nos primeiros semestres nos programas de pesquisa stricto sensu Brasil afora.

Pelos corredores acadêmicos brasileiros e, também, supõe-se, em outras partes do mundo, ainda que o foco de minha reflexão seja o Brasil, há anos, o espectro do alpinismo, das autorias contestáveis e das ficcionalidades na participação no que se refere à escrita de artigos ou de outros trabalhos acadêmicos assombra a universidade e reverbera para além dela.

O alpinismo é, também, até certo ponto, vaidade arrotada e, ao mesmo tempo, indecoro, covardia, esperteza e abuso de poder, arrisco-me a dizer.

O fenômeno em baila é fruto de uma febre por publicar, do desespero por se projetar como o bambam das pesquisas e das publicações, tudo com vistas a alimentar o lattes e pela projeção curricular, seja para pontuações em seleções ou, simplesmente, pela e para a mera ostentação do ego inchado, inflado e inflamável.

Quem nunca se deparou com os abusos de poder na academia, em especial em alguns, para não dizer todos, programas stricto sensu, em que muitos/as orientadores/as de dissertações ou de teses, em mestrados e doutorados, nas mais diversas áreas do conhecimento, se sentiram no direito de assinarem com os orientandos/as em artigos nos quais eles/elas não fizeram nada, só pelo simples fato de ver no/a orientando/a uma propriedade intelectual e uma oportunidade de seguirem ampliando o curriculum com a atualização do lattes a cada publicação feita pelo/a orientando/a que foi aceita em grandes revistas e periódicos científicos, recortes, na maioria das vezes, para não dizer em todas, sem participação alguma do/a orientador/a?

Nesse sentido, meu texto encontra pontes com o artigo “Precisamos falar sobre a vaidade na vida acadêmica”, de Rosana Pinheiro Machado, pois ainda que o meu ensaio crítico não tenha como foco a discussão em torno da vaidade acadêmica, a minha reflexão também desponta como crítica e combate às estruturas de poder que nos violentam e nos adoecem na universidade.

Fazendo intersecções entre o que diz a referida autora no artigo supracitado e a ideia que quero defender a partir da crítica necessária e urgente ao alpinismo científico na pós-modernidade, retomo a voz de Rosana, para mencionar que, de fato, é preciso sempre, e com muita força, “combater o mito da genialidade, a perversidade dos pequenos poderes e os “donos de Foucault”” nos espaços de debate e de produção de conhecimento no Brasil, nas universidades, sejam públicas ou privadas. E combater estes alpinistas é, de certo modo, também enfraquecer a roda do ego inflado, da opressão e do poder operado a partir do fundamentalismo científico fruto de moldes cartesianos obsoletos em pleno século XXI.
Esse combate é uma necessidade, pois esses donos de Foucault, de Derrida, de Deleuze, de Guattari e de tantos outros têm se multiplicado e projetado violências simbólico-concretas geradoras (dentre tantas bizarrices de poder) de autorias contestáveis que se reduplicam exponencialmente por todos os lados e sustentam um círculo quase irrompível de cientistas das espertezas, de pseudo-autorias ou de ficcionalidades de participação em escritas científicas.

Os alpinistas científicos se sustentam nesses mitos de genialidade ou no desejo de se projetarem por meio deles. Estes seres nefastos, para se consolidarem na academia, sempre pongam em alguém com alto potencial de produtividade científica, para, desta forma, por meio de intelectualidades opressoras, sugarem energia científica alheia, vampiros performáticos científicos ou seres fissurados em selfies curriculares de ficcionalidades de produção e de saber. Por tudo isso, é preciso ficar sempre bem esperto/a!

Como já evidenciado, essas pongas acontecem com muita frequência nas pós-graduações ou mesmo antes, ou seja, na graduação, pois estes seres alpinistas, escaladores por natureza, servos modernos da produção científica em série, prova cabal de que o capitalismo sufoca todos os espaços, e o acadêmico não ficaria de fora, se valem da inocência acadêmica dos pupilos.

Os tais alpinistas científicos, ou dito de outro modo, vampiros, estão sempre dominados pela lógica do publique ou pereça (Isso me faz até lembrar um artigo com este título) ou publique para enriquecer o currículo e, assim, ter mais chances de aprovação em seleções em que essas publicações despontem como elementos cruciais para turbinar a pontuação.
Por fim, como já mencionei, são muitos os casos em que um/a pós-graduando/a escreveu, arduamente, algum trabalho e o/a orientador/a assinou com ele ou com ela. Muitos até alegam e argumentam que tal atitude não seria aética ou não ética, afinal de contas o/a pobre orientador/a (ironia, evidentemente) é quem participou da revisão do texto ou algo nessa linha (quando isso acontece, já que muitas vezes o/a orientando/a fica ao léu sob a ideia projetada pelo/a mesmo/a orientador/a de que ele/a conseguiria pesquisar sozinho/a, pois teria a autonomia para tanto). Opino que muitos que operam a partir desse ideário confundem orientação do trabalho final com recorte de pesquisa transformado em artigo mesmo antes da escrita da dissertação ou da tese. Para mim, acho que isso é falta vergonha na cara, pois se esta lógica se sustentasse, na escrita do trabalho final no mestrado e no doutorado também apareceria o nome do/a orientador/a como autor/a do texto final, o que não ocorre.

Para complementar e alargar a discussão, é importante destacar que o alpinismo encontra guarida e respaldo nas estruturas de poder de revistas científicas cujos conselhos editoriais são compostos pelos seres becados que estipulam que somente certos titulados podem publicar e que na ausência dos tais títulos alunos/as pesquisadores/as, para serem balizados/as e terem seus trabalhos publicados, teriam que ter a anuência e nomes dos/as orientadores/as nos referidos textos. Ao fim e ao cabo, são os doutos silenciando vozes e dando aval para quem pode e quem não pode dizer algo no mundo científico. Ou seja, os alpinistas estão amparados na grande arena das produções, no grande teatro do poder e na farsa através da opressão.

Ademais, há exigências burocráticas e balizas engessadas de qualidade a partir de títulos para credibilidade científica. É a ciranda projetada e controlada que, direta e indiretamente, retroalimenta as rodas do poder e do silenciamento daqueles que por mais que saibam pesquisar e sejam super competentes cientificamente precisam dos teleguiadores alpinistas. Enfim, esse alpinismo científico, muitas vezes, é engolido por quem precisa do título para ascender profissionalmente neste país com mentalidade colonial mesmo no século XXI.

[avatar user=”Elissandro Santana” size=”thumbnail” align=”left” link=”attachment” target=”_blank” /] Elissandro Santana é professor da Faculdade Nossa Senhora de Lourdes e do Evolução Centro Educacional, membro do Grupo de Estudos da Teoria da Dependência – GETD, coordenado pela Professora Doutora Luisa Maria Nunes de Moura e Silva, revisor da Revista Latinoamérica, membro do Conselho Editorial da Revista Letrando, colunista da área socioambiental, latino-americanicista e tradutor do Portal Desacato.

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