Agosto e a velha felicidade de Aristóteles

Por Luciane Recieri, para Desacato.info.

Era agosto ainda, eu acho. Acho porque não tenho calendário. Eles não têm vida longa comigo. Começo bem, olhando tão repetitivos todos os dias, às vezes me arrisco a circular um dia ou outro, mas depois não me lembro que importância aquilo teve e eles, coitados, não cumprem um janeiro comigo. Atiro-os na gaveta e nunca mais… Sim, não tenho calendário nem telefone que funcione direito. Guio-me pelos ônibus que passam ou pelas estrelas fuliginosas da cidade. Neon me causa tristeza, evito olhá-los, pois a maioria deles tem uma parte onde o gás não chega e isso me traz falta de ar.

Tento construir os dias sem datas e horas, o que me ajuda são os alaranjados garis,  eles me avisam se é terça ou quinta, o que pra mim é suficiente, o resto se deduz.

O cheiro da lida vai mudando, o que me conta que o sol despenca e a lua já vem e, no lusco-fusco, nem me vejo e tudo é gato pardo, já nem ligo se corro riscos de vida ou de morte – fecho os olhos e atravesso a rua, tentando sentir se é larga ou estreita onde vai parar esta vida que já ficou grande demais.

Anoitece de tudo é estranho a escuridão porque tinha certeza da luz de poste aqui, faltou a mesa posta. Poste, posta, postre é sobremesa, prostrar-se é tudo junto: postear a luz, pôr a mesa, servir de sobremesa ao desejo de terminar.

-Terminar o quê?

Se a luz me domina, donde vou se me cego à toa?

Às tontas como em laranja sem fim, andando na casca que me promete felicidade se sair inteira.

– Ora, felicidade…

Ontem tentei falar de Aristóteles para a turma, explicar o que  era contemplação. Dois alunos ficaram com os olhos brilhantes porque entenderam isso, os outros, uma turma grande, fazia lanche coletivo na sala, se fartava de pão e água negra do imperialismo. Só ouviram isso – água-negra-do-imperialismo-às-sete-da-manhã?

O que é felicidade? Eu perguntava.

Por dentro de mim e me dizia: então não compro as limas da Pérsia, duvido que seja feliz com uma laranja assim tão sensível de pele e alma – pálida, amarelo raro, claro. Difícil de achar nas quitandas e difícil de tirar casca inteira pra dizer “será feliz” e deverá sempre procurar os números pares pra tudo nesta vida.

Não gosto de números pares, me atrai o indivisível, aquele que cabe na gaiola dos algoritmos.

Há morna maciez da tarde inclinada e frouxa atrás da janela.

Ela, a mesma que me dá receitas vagas de felicidade me convida a sair, mas antes desenho na parede tudo que sonhei ser.

Ela desenha na parede tudo que é.

Sonhei. Ela é.

Quando penso que ela é tudo que sonhei, o céu pesa como abóbada que é redonda como o teatro do mundo. Por que sempre pensei que o teatro do mundo era redondo?

As abóbadas são vazias, no entanto, extremamente pesadas, flutuam como fungos acesos sobre mim. E se caíssem? Sentiria o peso do céu.

Anoto toda dor nas histórias sem data… É o que traziam as folhas soltas embaixo da cama que parecia nunca ter sido arrastada.

Jaziam ali histórias mortas, tão mortas e vagas que pensava nunca ter entrado viva alma naquele quarto de dormir, mas continuava viva aquela outra de mim e provava recitando mil vezes as cartas que escrevi e rasguei, mil vezes recitou e mal as sabia de cor, delatando aos quatro ventos as folhas picadas que escondi um dia,

saúvas, onde passam nunca mais nada cresce.

Descobriram meu segredo: também não sei a resposta da pergunta que lhes faço.

 

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