Advogada de ex-reitor da UFSC diz que suicídio foi ato de extrema coragem e revolta

Por Lucas Vasques.

A prisão de Luiz Carlos Cancellier de Olivo, então reitor da Universidade Federal de Santa Catarina, na visão de sua advogada de defesa, foi arbitrária e totalmente desnecessária. “Bastaria que a Policia Federal intimasse o reitor para prestar esclarecimentos, o que de pronto seria atendido, mas jamais a prisão”, destaca Nívea Dondoerfer Cademartori.

Ela explica que no direito, especificamente o penal e processual penal, a prisão é medida de último recurso, que deveria ser aplicada somente em casos extremos. “Atualmente, há uma verdadeira banalização da aplicação das prisões temporárias (no caso do reitor) e preventivas, o que causa danos nefastos a todos que possam vir a ser suspeitos de cometimento de condutas ilícitas, mesmo sendo inocentes. Assim, ao se tratar da pessoa de Luiz Carlos Cancellier de Olivo, reitor da Universidade Federal de Santa Catarina, a prisão foi devastadora, pois ao comprometer sua imagem, gerou dano irreparável a todo um curriculum impecável construído com muito sacrifício e comprometimento ao longo de anos”, ressalta.

Fórum – A sra. era advogada do reitor Luiz Carlos Cancellier de Olivo. O que, de fato, aconteceu durante o processo, que terminou com essa tragédia?

Nívea Dondoerfer Cademartori – Atuei desde o início do inquérito em conjunto com o dr. Hélio Brasil, do escritório Galli, Brasil e Prazeres. A investigação movida em desfavor do reitor e demais professores relacionados aos Projetos de Ensino a Distância (EAD) teve início com denúncia anônima, da qual o reitor só tomou ciência no final do ano de 2016. As divergências administrativas entre o corregedor (Rodolfo Hickel do Prado, nomeado pela administração anterior) e o reitor, começaram logo no início do mandato. Em verdade, inicialmente, o reitor teve conhecimento de boatos sobre uma investigação sigilosa do corregedor referente a supostas irregularidades em EAD, mas como não podia ter acesso ao processo investigativo, por negativa do próprio corregedor, não tinha condições de saber o que realmente ocorria. Por essa razão, estavam contingenciados os repasses do MEC para esses cursos, fato que estava lesando o interesse de todos os estudantes nesse projeto. Inclusive, ressalte-se que representantes do MEC estiveram na UFSC tentando ter acesso a essas informações, como condição de liberação, o que também foi negado pelo corregedor. Ou seja, a responsabilidade maior na gestão desses projetos, assim como de todo o funcionamento quanto aos objetivos da universidade, estava sendo comprometidos nessa área. O reitor, além de hierarquicamente superior, tem competência concorrente com o corregedor para apuração de irregularidades, consoante à Resolução nº 42 CUn/2014 da universidade, que estabelece a subordinação hierárquica do corregedor ao reitor em todas as matérias administrativas, no parágrafo único do seu artigo terceiro. Ora, é curial no direito administrativo que uma das decorrências do poder hierárquico é a possibilidade de avocação de atos do subordinado pelo chefe. Com base nisso, o reitor exarou ato de avocação totalmente embasado em normativas e doutrina, chancelado pela procuradoria junto a UFSC, visando tomar ciência sobre esse processo para não causar mais prejuízos ao funcionamento dos projetos EAD. O corregedor se rebelou contra este ato e a CGU decidiu avocar o próprio ato do reitor para decidir se o reitor teria ou não essa competência. Portanto, pendia de uma interpretação da CGU tal possibilidade, e esta questão interpretativa, infelizmente, foi aceita e criminalizada pela Polícia Federal e acatada pela Justiça Federal. Ademais, impende salientar, que os projetos EAD, regra geral, são geridos pelas fundações de apoio, entes privados junto à UFSC, regulados por Lei, que possuem sistema próprio de controle interno, além do rigoroso controle externo realizado pelo Ministério Público. Sendo assim, a abordagem da PF deveria ser setorizada nas fundações onde tais projetos ocorrem e cujo conhecimento detalhado é impossível que o reitor detenha, pelo fato de que as universidades são estruturas descentralizadas. Isso tudo culminou com mandados de prisão e busca apreensão requeridos pela Policia Federal e acolhidos pela Justiça Federal.

Em sua opinião, portanto, a corregedoria Interna e independente, criada para investigar possíveis irregularidades na UFSC conduziu de forma equivocada todo esse processo?

Nívea Dondoerfer Cademartori – A corregedoria não é independente, mas sim autônoma em termos de atuação correcional, embora subordinada, em termos finalísticos, ao reitor na medida em que é ele que profere o julgamento dos processos enviados pela corregedoria, mas além disso, como já dito, há competência concorrente com a reitoria para instauração e investigação em matéria administrativa. Mas houve o sigilo e insubordinação do corregedor. E, sim, acredito que a forma foi realmente equivocada e mais, foi infinitamente prejudicial a todos os envolvidos. Há visivelmente desvio de finalidade, divergências administrativas que infelizmente resultaram em uma tragédia. Importante frisar, que o reitor sequer sabia de uma possível investigação interna contra a sua pessoa, até porque seria competência de órgão superior (Ministério da Educação) e em nenhum momento foi chamado para prestar esclarecimentos, seja na esfera administrativa ou mesmo judicial.

Dessa forma, como classifica a prisão do reitor?

Nívea Dondoerfer Cademartori – Ao meu ver, a prisão foi totalmente e, portanto, desnecessária. Isso porque, bastaria que a Policia Federal intimasse o reitor para prestar esclarecimentos, o que de pronto seria atendido, mas jamais a prisão. Isso porque todos que conhecem o direito, especificamente o direito penal e processual penal, sabem que a prisão é medida de última ratio (recurso), que deveria ser aplicada somente em casos extremos. Ou seja, atualmente, há uma verdadeira banalização da aplicação das prisões temporárias (no caso do reitor) e preventivas, o que causa danos nefastos a todos que possam vir a ser suspeitos de cometimento de condutas ilícitas, mesmo sendo inocentes. Assim, ao se tratar da pessoa de Luiz Carlos Cancellier de Olivo, reitor eleito da Universidade Federal de Santa Catarina, o qual possui brilhante carreira acadêmica, e mais, admirado e respeitado pela comunidade universitária e juristas de todo o País, a prisão foi devastadora, pois ao comprometer sua imagem, gerou dano irreparável a todo um curriculum impecável construído com muito sacrifício e comprometimento ao longo de anos.

A juíza Janaína Cassol Machado, que autorizou a prisão do reitor fez duras críticas à juíza substituta, Marjôrie Cristina Freiberger, que acabou liberando a soltura. Por que razão a sra. acredita que houve essa imensa diferença de interpretação entre ambas?

Nívea Dondoerfer Cademartori – Em princípio, a possibilidade de conflitos entre representantes da mesma instituição não é descartada, contudo soa de fato estranho uma colega magistrada externar publicamente críticas a outra colega, pois sabe-se que a função do Juiz sempre evocou, ao menos em ordenamentos republicanos e democráticos, uma aura quase monástica, discreta e só publicizável dentro dos autos quanto a opiniões de processos ou investigações sob sua guarda. Aliás, a LOMAN e o Código de Ética da magistratura (CNJ) vedam que o juiz se manifeste sobre processos em andamento e de criticar decisões de seus colegas. No mais, a defesa do reitor reafirma e avalia como correta a decisão da juíza Marjôrie que, após ouvir a outra parte, ou seja, os argumentos da defesa, entendeu ser a prisão desnecessária.

Para a situação em que ele se encontrava no processo, onde não pôde exercer pleno direito de defesa, segundo o que se pode observar, o abuso de autoridade fica mais evidente na medida que o reitor foi, inclusive, proibido de ingressar nas dependências da universidade e de falar com amigos?

Nívea Dondoerfer Cademartori – Certamente. A Universidade Federal de Santa Catarina era o verdadeiro lar do reitor Cancelier, e seu afastamento lhe causou dor imensa, o que culminou com o fatídico ato por ele cometido na manhã desta última segunda-feira. A medida aplicada era de não adentrar nas dependências da Universidade Federal e não ter acesso a possíveis documentos e provas relacionadas à investigação, ou seja, não havia uma proibição de real contato com demais pessoas relacionadas à UFSC. Contudo, da forma midiática com que tudo foi apresentado e como qualquer contato poderia ser interpretado de forma desfavorável, como tentativa de tumultuar a investigação, pareceu mais apropriado um distanciamento maior das pessoas ligadas à universidade. E infelizmente, desde o momento de sua prisão, até a presente data, nenhuma possível prova ou mesmo depoimentos foram sequer juntados aos autos pela Polícia Federal, o que sim, impossibilitou uma prévia defesa do reitor.

A sra. que conviveu muito próxima a ele, por força do ofício, sentiu que o desgaste emocional estava tomando conta do reitor, a ponto dele dizer que sua prisão representava a própria morte?

Nívea Dondoerfer Cademartori – Não apenas por força do oficio, porque além de minha pessoa, o dr. Hélio Brasil estava comprometido com a defesa do reitor. Mas, mais que isso, Cancellier era meu amigo pessoal, e a dor dele é minha dor! Ele estava, sim, muito abatido, a prisão dele, a violação de seus direitos e de sua dignidade, a sua revista vexatória foi algo que ele jamais imaginou passar em sua vida. Ser colocado em estabelecimento prisional, ser despido de suas vestes, ser “vistoriado” em suas partes íntimas, como ele mesmo disse, foi algo que ele jamais poderia superar. Contudo, a frase encontrada com ele dizia “ Minha morte foi decretada quando fui banido da universidade”, e sendo assim, mais do que a prisão, sua proibição de entrar na UFSC, sua casa, foi por demais humilhante e irreparável. Impõe salientar que o ato por ele cometido, de tirar a própria vida, ao contrário do que colocado por pessoas que não o conheciam verdadeiramente, não foi uma assunção de culpa ou ato de covardia, ao contrário, foi um ato de extrema coragem e revolta ante a deformação de um direito do qual ele se sentia um dos seus porta-vozes, e acima de tudo um ato de grande relevância política, do qual esperamos sinceramente que não tenha sido em vão, mas seja avaliado e compreendido como deve ser, uma séria avaliação de como estamos vivendo em um estado de exceção, sem respeito às garantias fundamentais de cunho penal e, por conseguinte, lesivas ao mais básico sentido de dignidade do ser humano! É preciso proteger as pessoas! Foi sempre seu lema

A sra. percebeu que o comportamento dele foi mudando até precisar de tratamento psicológico?

Nívea Dondoerfer Cademartori – Desde o início percebemos, eu e meus colegas, a necessidade de tratamento, seja decorrente de seu problema cardíaco, seja de abalo psicológico/emocional, ele estava sendo acompanhado por profissionais da saúde, mas infelizmente não foi o suficiente para impedi-lo de cometer suicídio. E isso se entende, lhe foi tirado tudo, principalmente a honra e dignidade pela qual sempre zelou.

Pelo que se sabe, a denúncia era de desvio da ordem de R$ 80 milhões do programa de Ensino a Distância. No entanto, o valor integral do programa, pelo que consta, era de R$ 80 milhões. Como é possível que o desvio seja referente ao valor total do programa? Isso foi abordado durante o processo?

Nívea Dondoerfer Cademartori – Exatamente, o valor de R$ 80 milhões era o total repassado ao programa, e o suposto desvio, cuja apuração ainda não foi concluída, estima-se em R$ 300 mil. Reforço que o reitor não era investigado por participação em nenhum desvio. Ademais, foram mobilizados, pelo que foi dito na entrevista coletiva da delegada da PF, mais de 100 policiais de todo Brasil, por exemplo, o delegado que ouviu o reitor veio do Maranhão exclusivamente para a operação, sendo crível que o custo desta midiática operação (diárias, deslocamentos, hospedagem, alimentação etc.) tenha superado eventual dano ao erário.

Essa espetacularização de prisões, com ampla cobertura da mídia, vem se disseminando ao longo dos anos no Brasil, mesmo que frequentemente acabem em absolvições. Temos vários exemplos notadamente durante as últimas operações deflagradas pela Polícia Federal em conjunto com o Ministério Público. Como observa essa questão?

Nívea Dondoerfer Cademartori – Esse fenômeno, na realidade, implica uma nova agenda quanto às ações dos sistemas de justiça agora, não mais pautados pelo aspecto contramajoritário que um direito democrático sempre deveria ter, e sim, pelo que uma suposta opinião pública transmite aos meios de comunicação e redige o agendamento das atuações dos operadores do direito. A busca por holofotes é, portanto, o reflexo direto da deformação da imparcialidade e imunidade da justiça frente a maiorias contingentes e seus arroubos emocionais nos diversos contextos políticos pelos que passa a sociedade.  É preciso lembrar ainda que os inquéritos policiais, em especial, com pedidos de quebra de sigilo e prisões provisórias, são, por força de lei, sigilosos, com acesso restrito inclusive para os advogados, causando estranheza que a imprensa tenho acompanhado as prisões desde o momento de suas realizações.

Não acha que está na hora da comunidade jurídica repensar os critérios de prisões preventivas e se esse é o caminho correto?

Nívea Dondoerfer Cademartori – Com certeza. É necessário com a máxima urgência uma revisão da forma como esses institutos estão atualmente sendo utilizados. Infelizmente, o princípio constitucional da presunção de inocência tem sido esquecido, ou melhor, ignorado, e em contrapartida nasce um novo princípio, da “presunção de culpabilidade”, o que jamais pode ser aceito, e mais, deve ser amplamente combatido.

Acredita que essa prática pode destruir reputações injustamente, assim como ocorreu com o reitor da UFSC?

Nívea Dondoerfer Cademartori – E isso já não tem acontecido? Quantas pessoas têm suas vidas destruídas por processos criminais, que têm início de forma irregular, desproporcional e sem no mínimo indícios suficientes? E aqui não falamos apenas de casos como o do reitor que teve alcance nacional, mas sim de todos os marginalizados que acusados por uma polícia muitas vezes despreparada e ávida por holofotes e, pior, encontrando respaldo em magistrados igualmente equiparados destroem vidas, reputações e famílias. Precisamos de forma urgente dar um basta aos abusos institucionais, e preservar as pessoas de desmandos e medidas autoritárias.

Em sua opinião, o que pode estar por trás desse processo tão malconduzido?

Nívea Dondoerfer Cademartori – Acredito em vários fatores, que vão de conflitos típicos de ambientes profissionais, tais como os de universidades, à necessidade de novo espetáculo midiático por parte de certas autoridades inebriadas pelo estrelato e que não suportam quando perdem protagonismo.

Fonte: Revista Fórum

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