Abuso sexual nas moradias da USP é constante e negligenciado

Mulheres denunciam diversos casos de assédio e violência sexual ocorridos no Crusp. Elas criticam a falta de acolhimento das vítimas por parte da universidade

Por Letícia Paiva e Carolina Oliveira, do Jornal do Campus.

Há cerca de três semanas, Luciana Flores* saiu de seu apartamento no Crusp pela manhã para ir ao dentista. Horas mais tarde, suas colegas ligaram pedindo que ela voltasse imediatamente, pois algo estranho havia acontecido. Luciana as encontrou em frente ao elevador, onde pichações a atacavam: seu nome era seguido da alcunha de “chupeteira”. Elas lavaram os escritos e a estudante procurou a Superintendência de Assistência Social (SAS), onde, segundo conta, a assistente social já havia sido informada do episódio. A moradora pediu para ser encaminhada pela guarda universitária para prestar queixa na delegacia, mas afirma que teve o pedido negado e não recebeu apoio. Dias mais tarde, numa ação de moradoras do Crusp intitulada “Abra as janelas para o machismo”, foram estendidas nas janelas faixas denunciando assédio e violência sexual contra mulheres na moradia estudantil.

Crusp
Para Luciana, seu caso é apenas “a ponta do iceberg”, sendo apenas mais uma dentre várias ocorrências de abuso que têm o Crusp como cenário. Clara Meireles*, moradora do conjunto, relata que evita ir à cozinha, espaço coletivo e de convivência dos estudantes, com medo de encontrar o homem que a estuprou e que, de acordo com ela, ainda mora em um dos apartamentos. Clara conta que foi violentada quando tinha 17 anos e já morava no Crusp, mas não teve coragem de pedir ajuda, por duvidar do acolhimento oferecido pela SAS – considerado pouco efetivo por ela.

Juliana Ferreira, que viveu irregularmente no Crusp por três anos e nunca conseguiu uma vaga para morar com sua filha pequena, afirma conhecer vários casos de violência contra mulheres na moradia, tendo sido, inclusive, uma das agredidas. Ela diz ter tido um relacionamento abusivo de mais de dois anos com um morador e estudante da FFLCH, chegando a ser violentada fisicamente. “A pessoa que tinha me agredido frequentava diariamente o espaço”, lembra. Segundo Juliana, há moradores que possuem inúmeras denúncias de assédio e agressão e continuam com suas vagas regularmente: “Em todos os casos que eu conheço, quem se retira do apartamento ou do convívio social são as mulheres que não suportam conviver com seus agressores. Muitas delas inclusive abandonam o curso”.

Pós-graduanda em Antropologia Social, a também moradora Yara Alves pontua que a insegurança é, na maior parte das vezes, motivada por assédio dos próprios alunos e moradores. “Acontecem muitos enredos, jogos emocionais complicados, meninas que se veem sozinhas em apartamentos com caras que forçam situações indesejadas”, conta. Juliana acredita que as alunas não se sentem protegidas e são desencorajadas a denunciar, principalmente quando o agressor é alguém do convívio próximo. “Há uma cultura de silenciamento em toda a Universidade e sobretudo no Crusp”, diz.

A professora de antropologia Heloísa Buarque de Almeida, especialista em questões de gênero e ex-coordenadora do programa USP Diversidade, garante que algumas denúncias vêm chegando à Rede Não Cala (antiga Quem Cala Consente), criada por professoras da Universidade e da qual a pesquisadora faz parte. Heloísa sustenta que a SAS não tem conseguido lidar com casos de violência sexual e assédios, sendo, muitas vezes, omissa em acolher as vítimas e punir agressores. Os funcionários da recepção e vigilância também não estariam preparados para agir. De acordo com a professora, é comum que os acusados não sejam afastados da moradia por conta da situação socioeconômica delicada em que se encontram os moradores do Crusp, geralmente de baixa renda e distantes de suas famílias. A pesquisadora diz que os agressores são, em grande medida, conhecidos, e permanecem morando no conjunto.

Além disso, segundo ela, há uma grande dificuldade em denunciar pois, ainda que a acusação gere a abertura de uma sindicância, as estudantes agredidas teriam de reviver o abuso em depoimento mais de uma vez. “As sindicâncias foram feitas para lidar com a vida acadêmica, não com casos de violência sexual. Fazer com que elas falem sobre o abuso várias vezes é revitimizá-las. Falar uma vez deve bastar”, defende a professora. Como forma de dar um basta nesses episódios, coletivos de mulheres vêm se organizando no Crusp, com ações como a de Luciana Flores. Nos cartazes, elas dizem que não vão suportar mais assédio, violência e estupros.

Responsável pelo Crusp, a SAS criou em 2005 o programa SOS Mulher, para receber denúncias e acolher moradoras que tenham sofrido qualquer forma de violência. Em edição anterior do Jornal do Campus, a Superintendência afirmou que, ao procurarem o SOS Mulher, as mulheres violentadas são orientadas a ir para a delegacia registrar boletim de ocorrência. De acordo com o comunicado, as acompanham até a Delegacia da Mulher e ao hospital, “além de oferecer suporte assistencial e psicológico para proteção e recuperação da vítima”. No entanto, até o fechamento desta edição, a SAS não respondeu sobre as denúncias e afirmações expostas nesta reportagem.

Casa do Estudante
E o problema não se restringe ao campus do Butantã. A Casa do Estudante (CEM), moradia dos alunos da Faculdade de Medicina (FMUSP), é acusada de ser palco de vários casos de assédio e abuso sexual. Durante a CPI das Universidades – cujos resultados foram divulgados em março deste ano – os abusos ocorridos na Medicina foram protagonistas de várias das duas mil páginas de investigação, incluindo relatos sobre a Casa do Estudante. O local, assim como o Crusp, é destinado a alunos de vulnerabilidade socioeconômica, com a diferença de não ser gerido diretamente pela USP, mas pelo Centro Acadêmico da faculdade, o CAOC (Centro Acadêmico Oswaldo Cruz). Localizada na Rua Teodoro Sampaio, na zona oeste de São Paulo, a Casa é administrada por uma comissão formada pelos próprios moradores, e seu financiamento provém do aluguel de um estacionamento.

Na CPI, é citada a existência, na CEM, do chamado “Quarto do Estupro”, espaço no qual alguns casos de abuso teriam ocorrido. Um dos mais conhecidos é a história de uma estudante de enfermagem, estuprada em 2012 por um aluno do curso de medicina, morador da Casa. O estudante, prestes a se formar, está sendo judicialmente processado pelo ocorrido, e encontra-se suspenso das atividades da Universidade. Além do episódio de 2012, o aluno também vem sendo processado por mais um estupro, além de ser apontado como autor de mais três, de acordo com informações do deputado Adriano Diogo, presidente da CPI – são, ao todo, cinco casos envolvendo o mesmo nome.

O estudante Yuri Regis, vice-presidente da Casa entre 2012 e 2013, aponta que o clima no período foi conturbado. “A responsabilidade por problemas de tamanha gravidade como acusações de estupro e assédio sexual pairava em algum lugar entre a Instituição FMUSP e nós como diretoria”, lembra. “Quando fomos notificados pela faculdade sobre o ocorrido, assumimos uma posição de que aquela responsabilidade deveria ser institucionalizada, e não deixada a decisões arbitrárias de inexperientes estudantes”. Segundo ele, nenhuma medida foi tomada na época, por parte da USP, para prevenir futuros casos. Sobre a decisão da faculdade de apenas suspender o acusado, Regis argumenta que a punição está “longe da gravidade dos fatos”. “Sempre me questiono o quão eficiente estão sendo essas medidas”, diz. “Até mesmo uma falsificação de assinatura gerou maior punição que um caso de estupro em nossa faculdade.”

Em nota, o coletivo feminista da FMUSP alega que recebeu várias denúncias de abuso no ambiente de moradia estudantil. “Os ambientes de vivência estudantil na Faculdade de Medicina foram palco de circunstâncias que expuseram a vulnerabilidade das mulheres à cultura do estupro e suas diversas expressões, incluindo o abuso sexual. Isso nos faz questionar que mecanismos ativos a Universidade tem para proteger as mulheres em ambientes que existem justamente para garantir a permanência estudantil daqueles em situação de vulnerabilidade“, diz a nota.

O professor Paulo Hilário Saldiva, que presidiu a comissão que apurava casos de estupro na instituição em 2014 (e que em seguida se afastou da FMUSP), diz que, na época, não chegou a receber denúncias formais sobre a Casa do Estudante, mas segundo ele, já havia alguns rumores. O caso do estudante de medicina e morador da Casa não teria vindo à tona naquele momento, mesmo depois de dois anos do ocorrido. “A Faculdade deveria ter tomado a liderança em apurar e combater essa situação, mas, enquanto as denúncias ‘ferviam’ na sociedade, a Medicina caminhava a passos lentos. Em vez de agir, teve que reagir”, afirma.

Segundo Felipe Scalisa, também estudante de medicina, os alunos sabem sobre os abusos, mas em defesa da tradição da FMUSP, muitos preferem se omitir ou até mesmo culpabilizar as vítimas. “A CPI gerou enorme silêncio e onda de cinismo na faculdade. Se houve conscientização, foi mais na turma de calouros. Nas turmas mais velhas não gerou nada porque todo mundo já sabia o que acontecia, era cúmplice e queria manter as coisas como estavam”, afirma.

No que se refere à Casa do Estudante, Regis avalia que mudanças positivas vêm ocorrendo. “Acredito que a CEM esteja passando por um processo estimulante de reformulação da sua própria cultura, muito mais pela discussão suscitada por coletivos do que por proibições formais”, diz. “Nesses três anos, novas gerações de moradores entraram, já problematizando algumas estruturas. Não acredito que algum novo caso de estupro ou assédio venha a acontecer na atual conjuntura.”

Na edição 449 do Jornal do Campus, a reportagem tentou contato com a Faculdade Medicina da USP em busca de informações e esclarecimentos, em particular sobre o caso do estudante suspenso. A Faculdade se negou a comentar, alegando que o caso corre em segredo de justiça. Nessa edição, questionada a respeito de uma sindicância sobre a convivência na Casa do Estudante, não recebemos retorno até o fechamento desta edição.

Júlia Mafra, aluna da EACH, expôs seu caso de abuso na Internet após ser violentada por colega. Foto: Letícia Paiva
Júlia Mafra, aluna da EACH, expôs seu caso de abuso na Internet após ser violentada por colega. Foto: Letícia Paiva

Repúblicas
Quando decidiu ir a uma festa em uma república estudantil na capital, Júlia Mafra, estudante de Gestão de Políticas Públicas na EACH, não pensou que, seis meses mais tarde, publicaria um texto em que denunciava ter sido abusada sexualmente por alguém que, até então, considerava um amigo. Em meio à frequente dificuldade em denunciar uma violência sexual, Júlia resolveu expôr sua história na internet, para quem quisesse ler. “O relato foi uma forma de canalizar a dor. Como eu não coloquei o nome dele, eu acabei me expondo muito mais”, conta. Depois da publicação, outras mulheres disseram a ela terem passado por situações semelhantes: “Percebemos que só poderia ser a mesma pessoa. Foram cinco casos”.

Sobre aquela noite, Júlia lembra de, alcoolizada, dormir no sofá da república e ser levada por alguém que ela acredita ser o agressor para o quarto, no andar de cima: “Quando eu deitei na cama ele deitou comigo, começou a me beijar, e eu falei que não queria, mas não tinha forças. Quando eu acordei no dia seguinte, ele estava de cueca ao meu lado”. A princípio, a estudante passou meses procurando esquecer o ocorrido, julgando-se culpada e continuando a conviver com o jovem. “Depois que eu tomei consciência de que aquilo que tinha acontecido não era culpa minha, que eu tinha sofrido um abuso, aquilo foi me transformando. Então eu não conseguia mais encontrar com ele”, lembra.

Na época, em meados de 2014, Júlia não chegou a registrar boletim de ocorrência e, quando adquiriu coragem para tanto, seis meses depois, já não era mais possível. A estudante conta que, desde então, vem fazendo tratamento psicológico para superar o trauma. “Ele era meu amigo, muito meu amigo. Eu não imaginava que ele fosse fazer isso comigo, de verdade. Ele sempre bancou um super discurso de gênero, é um cara que tem total compreensão da situação”. Júlia lembra que, depois de tudo, algumas pessoas questionavam suas acusações: “Elas me diziam ‘será que você não deu a entender?’. Eu estava dormindo, não tem como”.

Casos de violência sexual em repúblicas estudantis não são incomuns. No relatório final da CPI das Universidades, existem denúncias envolvendo trotes violentos em repúblicas do interior e também abusos sexuais, como o da estudante de medicina veterinária violentada em 2013 quando se hospedava em uma república de Pirassununga, cidade em que teria aulas da graduação. O agressor foi investigado por uma sindicância aberta pela Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia (FMVZ), que determinou sua expulsão. A sindicância também sugere que a USP tome medidas, ainda que o caso tenha ocorrido fora da Universidade.

Embora as repúblicas universitárias não possuam qualquer tipo de vínculo com a USP e não estejam localizadas dentro dos campi, o professor Antônio Almeida, da Esalq (Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz”), afirma que cabe à Universidade fiscalizar possíveis abusos cometidos por alunos também nestes locais, conforme indicado na Portaria 3.154 – instituída em 1998 e que discorre sobretudo acerca das práticas de trotes violentos. O artigo 2º da Portaria afirma que “não será tolerado qualquer tipo de manifestação estudantil que cause, a quem quer que seja, agressão física, moral ou outras formas de constrangimento, dentro ou fora do âmbito da Universidade”. Segundo o professor, o texto dá à USP a responsabilidade por punir incidentes ocorridos mesmo fora de seu território. “A USP tem de punir. Porque também é uma violação do código disciplinar”, diz. “A direção da Universidade precisaria fazer aquilo a que se propôs na portaria”.

O professor da Faculdade de Direito da USP e doutor em direito penal, Guilherme Feliciano, explica que, embora existam diferentes graus de autonomia das moradias em relação à niversidade, se o quadro de violência é endêmico, a Universidade deve interferir e estabelecer rotinas de segurança mais eficientes. “Se houve estupro então, é muito mais grave”, pontua. Sobre isso, ele aponta que, os casos aqui tratados se referem à violência sexual, que, de acordo com o artigo 213 do Código Penal, tem pena 12 a 30 anos de reclusão. A exceção é o caso de Luciana Flores, em que agressões de cunho sexual foram pichadas no Crusp, o que se enquadraria em assédio, com pena de detenção de um a dois anos.

Para Almeida, as ações tomadas pela USP até agora não foram efetivas de fato. O professor cita como exemplo a participação da Universidade no HeForShe, projeto da ONU que busca desenvolver iniciativas de igualdade de gênero ao redor do mundo. “Acredito que a reação da USP foi preocupada exageradamente com a imagem. Foi dado um tratamento burocrático, distante, sem o acolhimento prioritário que essas questões merecem”, avalia. “Não é uma vez, são muitas vezes, e ocorre em todas as unidades. A Universidade está perdida diante do problema.”

* Nomes fictícios. As identidades foram omitidas a pedido das fontes.

Imagem: Cartaz da campanha “Abra as janelas para o machismo” penduradas em janelas do Crusp. Foto: Bárbara Monfrinato.

Fonte: Racismo Ambiental.

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