Aborto: criminalização viola direitos humanos e constituição

aborto

Por Paula Guimarães. 

“Somos um país extremamente eficiente em violar direitos humanos das mulheres”, foi o consenso a que chegaram os participantes, ao fim do debate Aborto e Direito, transmitido ao vivo, na noite de segunda-feira, no site do Grupo de Estudos sobre o Aborto (GEA). O evento realizado por videoconferência integra o Seminário Sequencial Aborto e Sociedade que segue com mais três debates até 25 de junho. Além do moderador, o público também pôde participar com perguntas aos cinco debatedores e cinco comentaristas.

Segundo os participantes, os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres são direitos humanos reconhecidos nos tratados internacionais, com os quais o Brasil assumiu compromissos e não tem cumprido.

“Existe fundamento na punição de mulheres que recorrem ao aborto, com base no Código Penal, constituído no ano de 1940?” perguntou o moderador Jefferson Drezett, membro do GEA para abrir a discussão. José Henrique Rodrigues Torres, Juiz de Direito, referiu-se diretamente ao questionamento: “o aborto deve ser criminalizado?”. Conforme ele, o Sistema Internacional de Proteção aos Direitos Humanos tem afirmado reiteradas vezes que o abortamento é uma questão de saúde pública e deveria estar fora do sistema penal, porque a criminalização é incompatível com a assistência à saúde das mulheres.

Em sua fala, explicou que o Brasil aderiu aos tratados e os incorporou ao sistema jurídico interno, portanto a manutenção da criminalização viola os princípios desse sistema e, consequentemente, a constituição brasileira. O juiz tratou como “falso dilema” o que se convencionou estabelecer como questão central na sociedade brasileira quando se trata de aborto: ser contra ou a favor.

“Nós somos a favor da descriminalização. Essa é uma atitude a favor da vida, da dignidade. Somos contra o controle da sexualidade feminina, que é o grande objetivo da criminalização do aborto”, enfatizou.

Conforme ele, na teoria do direito, a criminalização não se justifica, primeiro porque existem outras alternativas relacionadas à saúde pública e, principalmente, porque ela traz mais danos do que o problema a ser enfrentado.

O direito de optar
A socióloga Jacqueline Pitanguy defendeu que o foco da discussão sobre a descriminalização está ligado ao direito de optar e não à obrigatoriedade de realizar ou não o aborto.

“Aquelas pessoas que são contrárias, por questões morais e religiosas, não são obrigadas a fazer. Não é possível que, em função das crenças religiosas de alguns, se legisle para todos. É importante situar a questão do aborto no espaço da democracia, da pluralidade, de abortar ou não em qualquer circunstância”, opinou. 

A socióloga lembrou que antes da Constituição de 1988, a mulher era considerada cidadã de segunda categoria. “Hoje do ponto de vista formal e legal não é mais”, pontua. Para ela, o código penal de 1940, não acompanha a vida, a capacidade e autonomia da mulher e assim “corta o direito de decisão na esfera da reprodução humana”. “Os princípios gerais dos Direitos Humanos como o direito à dignidade humana, à saúde e à autonomia, que são acolhidos numa série de instâncias da vida, não o são com relação ao abortamento. Isso leva a um questionamento muito profundo em relação aos nossos legisladores, a nossa colocação no sistema internacional”, assinala.

Segundo a especialista, nos EUA, países da Europa e alguns da América Latina, a prática não é penalizada até doze semanas. “O debate está travado no Brasil, há uma paralisia por questões de moral religiosa que só fazem aumentar a punição nos casos em que já é permitido”, destacou.

Punição para garantir a sociedade patriarcal
As debatedoras criticaram a falta de encaminhamento e respostas do Ministério da Saúde – que editou as Normas Técnicas de Atendimento ao Abortamento Legal – frente à orientação de mulheres vítimas de estupro. Sugeriram que seja criado um “disque estupro” – ou que o 180 voltado à violência sexual cumpra esse papel – para que a mulher possa ser informada sobre como recorrer ao direito, previsto por lei.

Na opinião da advogada criminal, Maíra Fernandes, é preciso desconstruir os tabus em torno do tema, especialmente quando se trata de aborto legal, caso em que atores sociais demonstram total desconhecimento sobre as normas que regem a prática. Ela defendeu que o debate seja estendido para a sociedade em geral, escolas, universidades, de forma que o tema seja entendido e a legislação possa evoluir. “A mídia poderia ajudar, mas infelizmente, não o faz. Assisti uma matéria em que o jornalista disse que a menina estuprada iria pedir autorização judicial para fazer o aborto, sem ter minimamente esclarecido o fato. Liguei para o delegado e ele disse que iria abrir um boletim de ocorrência para pedir o aborto legal, demonstrando desconhecimento profundo sobre a norma técnica. Não é culpa somente da imprensa, até mesmo o delegado não sabia”, detalha.

A advogada explicou que a legalidade em caso de estupro é o maior exemplo de uma legislação punitiva para garantir a proteção da sociedade patriarcal. No código penal, a excepcionalidade não se justificaria pela gravidez indesejada, resultado de violência contra a mulher, mas sim por fatores socioculturais e morais: “para o marido não ter que cuidar do filho, fruto de estupro”.

Em sua opinião, a proibição mesmo não levando a números significativos de prisões, permite que a punição aconteça, como no caso recente de fechamento de clínicas no Mato Grosso do Sul, no qual mulheres foram obrigadas a cumprir pena em creche para aprender o “valor da maternidade”.

“Isso é uma punição cruel, uma tortura que a criminalização possibilita. Não é impossível que uma mulher e um médico respondam processo por aborto”, assinalou.

Mulheres de classe alta não são penalizadas
A única meta do milênio que o Brasil não vai bater trata-se da redução da mortalidade materna. Dado que se deve em grande parte à prática de aborto clandestino. No Brasil, são realizados de 800 a um milhão de abortos ilegais por ano, lembrou Ana Paula Meirelles, coordenadora do Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública de São Paulo.

“A lei penal não atinge o principio da efetividade, só obriga a mulher a praticar de forma insegura. Quem morre e é processada é o público alvo da defensoria pública: pobres e negras. Mulheres da classe alta vão são penalizadas, porque as denúncias nem chegam ao judiciário”, apontou a coordenadora. 

Ana Paula assinalou que para avançar na descriminalização e depois na legalização – que é permitir a existência de políticas para realização do aborto – é preciso ainda vencer a efetivação do aborto legal, que mesmo garantido por lei tem se tornado cada vez mais distante para as mulheres.

Sociedade e falsa moralidade
Tamara Amoroso Gonçalves, advogada e mestre em Direitos Humanos, colocou em questão a “falsa moral” da sociedade que divide o privado do público: acolhe o aborto quando este é praticado por alguém próximo e defende a punição quando está relacionado ao desconhecido.

“Quem é o outro, se alguém que conhecemos já fez? Que loucura coletiva é essa que trava esse debate e impede de avançar na pauta. A mulher deve ter direito de escolha e ela escolhe. O que vamos fazer com essas outras? Se eu e meus amigos podemos pagar, tudo bem. E quem não pode pagar, a legislação mata ou deixa infértil? Esse é um pensamento mesquinho”, indignou-se.

Para a advogada não há nenhuma justificativa hoje para criminalizar as mulheres que praticam o aborto. “É absolutamente reprovável a gente achar normal e razoável que mulheres que têm dinheiro possam praticar aborto e mulheres que não têm a mesma condição econômica acabem morrendo ou ficando inférteis”, pontuou.

Os próximos três debates acontecerão das 20h às 21:30h, nas seguintes datas com os respectivos temas:
17 junho: Religião e Aborto
22 junho: Saúde Pública e Aborto
25 junho: Mulheres e Aborto

Para assistir e participar basta acessar o site do GEAhttp://www.geasite.com

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