Aborto continua sendo ilegal no Brasil; entenda o impacto da decisão do STF

Em protesto, mulheres reivindicam, no Rio de Janeiro (RJ), a descriminalização do aborto / Mídia Ninja
Em protesto, mulheres reivindicam, no Rio de Janeiro (RJ), a descriminalização do aborto /Foto:  Mídia Ninja

Por Rute Pina.

A Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) afirmou nesta terça-feira (29) que o aborto até o terceiro mês de gestação não é crime. O argumento foi dado ao julgar o mérito do habeas corpus de cinco profissionais de saúde presos em flagrante por manterem uma clínica de aborto em Duque de Caxias (RJ).

Especialistas ouvidas pelo Brasil de Fato explicam que a opinião dos magistrados não tem força de lei, e a decisão só é válida para este caso concreto, mas fortalece o debate pela descriminalização e legalização do aborto no Brasil. Atualmente, o procedimento só é legalizado em gestações que geram risco à mãe e em casos de estupro.

Na Corte, o ministro Luís Roberto Barroso, que foi referendado pelos ministros Edson Fachin e Rosa Weber, afirmou que a legislação que criminaliza o procedimento é do Código Penal de 1940, incompatível com o direito de igualdade de gênero garantido às mulheres na Constituição de 1988. Para Barroso, como um homem não engravida, só haverá igualdade plena se o direito de decisão for concedido às mulheres.

Confira a versão em áudio da matéria:

“Na prática, portanto, a criminalização do aborto é ineficaz para proteger o direito à vida do feto. Do ponto de vista penal, ela constitui apenas uma reprovação ‘simbólica’ da conduta. Mas, do ponto de vista médico, como assinalado, há um efeito perverso sobre as mulheres pobres, privadas de assistência”, continua Barroso no texto, que pode ser lido na íntegra aqui.

Segundo a advogada e militante feminista Francine Barenho, da Marcha Mundial das Mulheres, a decisão abre uma jurisprudência, ou seja, um precedente para que esta argumentação jurídica seja utilizada em casos semelhantes no STF ou mesmo em outros tribunais.

“Eles apontaram para uma possível inconstitucionalidade do aborto, mas não é o que se julgou ali. E esta não é uma decisão obrigatória, que tenha que ser acatada pelos demais tribunais. Ou seja, não significa que efetivamente esteja se descriminalizando o aborto”, disse.

Para a advogada Fernanda Vargues Martins, vice-presidenta da Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em São Carlos (SP), a decisão foi “inesperada e bem-vinda”. Segundo ela, Barroso adiantou um entendimento sobre a matéria, que pode sinalizar uma posição de toda a Corte.

Ela também reitera que a decisão não é vinculante [quando tem que ser aplicada a todos os outros juízes], mas um “precedente bem interessante”. A advogada pondera ainda que a descriminalização e a legalização da prática só podem ser decretadas através de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), avaliada pelo STF, ou por uma reforma legislativa.

“Como temos o Congresso mais conservador da história, inacreditavelmente, a ação de inconstitucionalidade pode ter mais repercussão. Parece que o Supremo está mais aberto a receber o que o movimento de mulheres pede há anos”, afirmou.

Repercussão

No topo dos trending topics do Twitter durante toda a tarde desta quarta-feira (3), as hashtags #AbortoNão e ABORTO SIM adiantaram nas redes sociais um debate que já é inadiável, na visão de Regina Jurkewicz, coordenadora do movimento Católicas pelo Direito de Decidir.

Ela pontua que estes casos específicos, como a possibilidade de realizar o aborto por causa de infecção pelo zika vírus, obrigam o Estado a repensar sua orientação. Mas, para ativista, correntes fundamentalistas e conservadoras geram polarização e impedem o debate com uma defesa “abstrata da vida”.

“Evidentemente, os setores contrários vão levantar a voz. Mas precisamos de um debate racional, onde se pese as questões sem índole religiosa. Sem uma ética laica e que garanta o direito das pessoas, chegaremos a um ponto em que não haverá diálogo”, apostou a coordenadora.

Reação da Câmara

A resposta do presidente da Câmara dos Deputados Rodrigo Maia (DEM-RJ) foi praticamente imediata. Após críticas da bancada evangélica, Maia anunciou a instalação de uma comissão especial que deliberará sobre a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 58/2011, parada desde 2013 e que estende a licença maternidade em caso de nascimento prematuro. O conteúdo do projeto, porém, deve ser ampliado para tratar e endurecer a legislação de aborto.

Maia afirmou que, se o Congresso Nacional entende que o STF interferiu em suas prerrogativas e legislou sobre um assunto, cabe ao Legislativo “responder ratificando ou retificando essa decisão”.

Martins, no entanto, diz que possibilidade do aborto ser considerado inconstitucional não foi a razão da soltura dos profissionais de saúde. Para ela, a confusão explicita que, mesmo que o tema ganhe repercussão e debate com a sociedade civil, encontrará resistência.

“Se a gente conseguir a descriminalização, o que não foi o que aconteceu, não significa que o aborto será gratuito e a partir do SUS [Sistema Único de Saúde]. Isso ocorreria só com a legalização. Mas, se só ontem três ministros falaram sobre descriminalizar e já teve essa repercussão, quer dizer que a legalização está muito longe”, ponderou.

História

Nos Estados Unidos, uma decisão da Suprema Corte, em janeiro de 1973, foi determinante para a legalização do aborto em todo o território americano. Jane Roe, nome fictício de Norma McCorvey, uma mulher solteira e pobre, recorreu à Justiça americana em 1970 pelo direito de interromper a gestação resultado de um estupro.

No Texas, onde residia, a pena para quem praticasse aborto era de cinco anos de prisão. Henry Menasco Wade representou o estado e, por isso, o episódio ficou mundialmente conhecido como o caso Roe vs Wade. Três anos depois, quando chegou à instância máxima do Judiciário estadounidense, o magistrado, amparado no direito à privacidade, decidiu que Roe poderia decidir a continuidade ou não da gravidez.

Como este princípio era considerado um direito fundamental da Constituição, nenhum estado poderia legislar contra ele. A decisão, então, obrigou a alteração de todas as leis federais e estaduais que restringiam o aborto. A mulher deu à luz sua filha enquanto o caso ainda não havia sido decidido. O bebê foi encaminhado para adoção.

Comparação

Martins pontua que uma relação com o que ocorreu nos EUA é “complicada”, já que existem diferenças cruciais entre a Suprema Corte americana e o STF, além de toda a estrutura do Poder Judiciário divergir. “A relação que faço é que, vendo alguns ministros tendo decisões como esta, juízes de primeira instância que tendem a ser mais progressistas podem ter coragem de, a partir de casos concretos, absolver pessoas acusadas do crime de aborto”, pontuou Martins.

Já Jurkewicz acredita que a decisão pode seguir o mesmo caminho, ao demonstrar que a proibição no País, principalmente no que concerne aos números relativos a mulheres pobres das periferias, é cada vez mais insustentável e inviável.

“É uma situação epidêmica, praticamente, e a gente objetivamente vê que os países como Uruguai, que legalizaram o aborto, não só conseguiram reduzir o número de mortalidade, mas também diminuir o número de aborto, porque elas passam a ter mais acesso aos contraceptivos e à educação sexual”, lembrou.

Edição: Camila Rodrigues da Silva

Fonte: Brasil de Fato.

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