‘A Vida Invisível’, uma arrebatadora história de mulheres

Representante do Brasil na corrida pelo Oscar, o belíssimo ‘A Vida Invisível’ é um melodrama de Karim Aïnouz que discute a condição feminina e a sujeição da mulher ao patriarcado no Brasil dos anos 1950.

Por Paulo Camargo

Imagem: Reprodução

Preste atenção ao onírico prólogo de Vida Invisível, longa-metragem do diretor cearense Karim Aïnouz em cartaz nos cinemas brasileiros desde a semana passada. As irmãs Eurídice (Carol Duarte) e Guida (Júlia Stockler) caminham entre árvores, provavelmente no meio da Floresta da Tijuca, no Rio de Janeiro dos anos 1950. Estão juntas e, de repente, já não estão mais. Perdem-se uma da outra. Primeiro se ouvem, mas depois também não conseguem. A caçula, Eurídice, parece entrar em desespero. Sua voz, em off, fala de um certo vestido que que nunca deveria ter deixado a irmã vestir.

Guarde essa sequência nos olhos: ela é linda, em toda a sua incerteza e simbologia. Mas também a mantenha na memória, porque explicará muito do que ocorrerá no filme, livremente baseado no romance A Vida Invisível de Eurídice Gusmão, da autora carioca Martha Batalha.

Com belíssimo roteiro do curitibano Murilo Hauser, Vida Invisível é a história das duas irmãs, filhas de um casal de imigrantes portugueses que mora no tradicional bairro de Santa Tereza, próximo ao Centro, de onde se tem vistas deslumbrantes do Rio, que no filme é retratado com toda a sua exuberância tropical, vertendo sensualidade, quando ainda era a Capital Federal.

Guida está em sintonia com essa efervescência: é uma jovem sanguínea, impulsiva, que não contém o desejo de se fundir com a cidade, cujas cores e sons invadem as janelas de sua casa, como uma onda de calor. A deslumbrante fotografia de Hélène Louvart se encarrega, já nas primeiras cenas do longa, de nos transportar a esse lugar úmido, de cores saturadas. Guida precisa sair para para encontrar Yorgos, um marinheiro grego por quem está, talvez, apaixonada. Quer cair no mundo, ser ela mesma.

Ao contrário do livro que o originou, mais leve, e por vezes até humorístico, A Vida Invisível chega ao cinema sob a forma de um arrebatador melodrama.

Eurídice, por sua vez, é mais contida, hesitante, e teme pela ousadia da irmã, mas concorda em acobertar a escapadela de Guida, que promete retornar, não sem antes revelar que, embora não tenha se deitado com Yorgos, ele já a tocou como nenhum outro homem, e a fez sentir “um calorão subir pelo corpo”. O desejo da mais nova é de outra ordem. Ela sonha ir para Viena estudar piano e tornar-se uma grande instrumentista.

Esta noite, que deveria ser como outras tantas, no entanto, será decisiva tanto na vida de Eurídice quanto de Guida, que, ao optar por transgredir as regras do patriarcado, saindo da posição passiva e bem comportada que cabia às mulheres de sua época, desencadeará uma sucessão de acontecimentos devastadores, que irá modificar não apenas a sua vida, mas também a da irmã. Para sempre.

Ao contrário do livro que o originou, mais leve, e por vezes até humorístico, A Vida Invisível chega ao cinema sob a forma de um arrebatador melodrama. A opção de Aïnouz faz sentido. Admirador da obra de grandes do gênero, como Douglas Sirk (de Imitação da Vida), o diretor de Madame Satã opta pelas vastas emoções, por um excesso calculado, para discutir temas urgentes tanto no Brasil dos anos 1950 quanto no de hoje, como a sujeição feminina ao patriarcado e o apagamento de muitas mulheres em uma ordem social que lhes nega o direito tanto ao prazer sexual quanto à construção do próprio destino. Apesar de ser uma trama de época, A Vida Invisível é extremamente atual.

A decisão de Aïnouz deu mais do que certo. Seu longa venceu os prêmios de melhor filme na mostra Un Certain Regard, do Festival de Cannes, na França, e do Festival de Valladolid, na Espanha. Também foi o título escolhido para representar o Brasil no Oscar.

Eurídice, na velhice, é vivida por Fernanda Montenegro, que acaba de completar 90 anos e, apesar de fazer uma participação especial, com poucas cenas, faz um trabalho extraordinário ao conseguir imprimir à personagem o mesmo tom algo fora de lugar, margeando o teatral, de Carol Duarte, cuja ousada atuação contrasta, propositalmente, com o naturalismo da excelente Julia Stockler, uma força da natureza em um filme extraordinário, que ao lado de Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, atestam o vigor e a diversidade do cinema brasileiro contemporâneo.

 

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