A sociedade do chicote e do medo

Por Concessa Vaz.

As considerações que se seguem derivam de um debate conduzido em 29 de abril de 2015, pelo jornalista Antonio Martins, por ocasião do lançamento do livro do psicanalista e professor da USP, Christian Dunker –Mal-estar, sofrimento e sintoma – uma psicopatologia do Brasil entre muros -, no auditório do Sindicato dos Bancários, na capital paulista. Presentes aí estavam os filósofos Paulo Arantes e Vladimir Safatle, bem como a psicanalista Maria Rita Kehl. O debate foi suficientemente rico a ponto de despertar reflexões sobre o fenômeno do medo, oriundas de outras direções e outros ângulos. Estou me referindo à natureza mais ampla de tal fenômeno – o medo -, inserido como parece estar na totalidade do sistema que nos rege a todos globalmente – o capitalismo.

Autores franceses têm acentuado a generalidade desse fenômeno, como manifesto, por exemplo, no livro Gouverner par la Peur [“Governar pelo Medo”], da Coleção Transversales Sciences Culture, publicado pela Fayard em 2007. A abordagem não é psicanalítica, embora haja autores no livro que a combinem com a sociologia, a economia e a história, utilizando Freud e seu conceito de pulsão de morte. Todos associam o medo às condições econômicas e sociais características do capitalismo atual globalizado, que dão origem a uma “ère du vide” [era do vazio], marcada pela “absence d’espérance”, pelo “retour de l’autorité”, do “État fort”, da “insécurité e sécurité”, que se misturam indistintamente nas mesmas retóricas e atiçam os medos.

Vivemos numa economia dominada pelo risco, o que produz angústia. A globalização produz e acelera as desigualdades sociais, ao contrário do que se sustentava, e não somente nos países não desenvolvidos e pobres, mas em especial nos países ricos. Estas desigualdades estão na base da violência e da incivilidade a que hoje assistimos. O desemprego, a precarização do trabalho, a inquietude sobre o futuro, os problemas ambientais, o sentimento de uma natureza limitada constituem, em conjunto, ameaça à sobrevivência da espécie humana.

No debate que motivou este artigo, Paulo Arantes menciona com pertinência essa característica ampla do fenômeno do medo, o que pode ser resumido com suas próprias palavras: “nós somos a verdade do Centro”. Isto significa, no meu entendimento, que não há um “mau caráter brasileiro” propriamente dito, uma violência, atos de corrupção, desvios patológicos, aberrações que nos sejam peculiares e exclusivas, provenientes de nossa filiação híbrida colonial. Esta “psicologização” do Brasil não se mantém se abrirmos nossos olhos para o mundo globalizado em que nos encontramos hoje, um mundo imiscuído – e ponto final! Do livro dos franceses, pode-se depreender, e como disse Arantes, coincidentemente, que “nunca fomos tão geridos… tão governados… como agora”. E resgatando Foucault, nunca fomos tão “vigiados” e “punidos”, como hoje. O mundo globalizado levou a uma “fabricação proposital do medo” (Arantes), à “ circulação do medo social” (Kehl), e isso é um fenômeno novo, sem dúvida, mas não especificamente brasileiro, antes global, verificado na França de hoje (uma “Monarquia” Republicana, governada por versões recicladas de Napoleão Bonaparte”, nas palavras de um dos autores franceses), nos Estados Unidos pós-Bush, bem como no Reino Unido e outros cantos do Ocidente “democrático”. A globalização capitalista reintroduziu a insegurança social e uma forma de Estado similares àquelas que predominaram ao longo do século 19 até a Segunda Guerra Mundial, fundadas no liberalismo econômico (ausência de intervenção do Estado na economia de mercado) e num Estado – Estado “gendarme” — cujo papel primordial era o de “guarda noturno”, como bem expressou o historiador Eric Hobsbawm em seus livros.

As sucessivas guerras e conflitos decorrentes desse capitalismo liberal haviam conduzido as nações ricas ocidentais a constituir um Estado de bem-estar social, cuja função era apaziguar e dar guarita aos pobres e aos não proprietários — ou seja, a maioria da população, assalariada ou não, bem como amortecer as crises cíclicas próprias do sistema capitalista de mercado. Esses “anos dourados” do capitalismo, que reduziram substancialmente as incertezas, os conflitos, a criminalidade, a violência interna das nações desenvolvidas, chegaram ao fim nos anos 1970 e, a partir da década de 1990, o caráter neoliberal do capitalismo se consolidou como um assombro, quando todas as barreiras que impediam a total mobilidade do capital foram quebradas mundo afora.

Começa-se a assistir, então, ao declínio dos direitos sociais adquiridos à custa de tantas batalhas, incluindo as revoluções socialistas que viriam servir de ameaça aos países capitalistas. O resultado dessa mundialização do capital é visível, salta aos olhos mesmo dos mais desavisados ou encobertos pela cegueira típica dos alienados. O desemprego mundial é alarmante; a fome cresce na medida mesma da maior concentração de renda e de riqueza em nível mundial, como demonstrou competentemente Thomas Piketty em seu livro O Capital no Século XXI; as guerras pelo domínio das fontes de matérias-primas perseveram e se aceleram revestidas do manto da “democracia”; as populações desses países solapados e destruídos por essas guerras imperialistas partem em retirada, enfrentando os horrores de uma fuga, na vã esperança de obter guarita nos países responsáveis, eles mesmos, por suas desgraças econômicas e políticas; e, não menos assustador, o planeta encolhe, quando já não anuncia seu futuro-próximo funeral, um resultado de pouco mais de dois séculos de avanço sem limites das forças produtivas criadas pelo capital, em sua busca insaciável de lucros a qualquer custo, sem regras nem rédeas.

Multidões desamparadas deixam seus lares arruinados em busca da “terra prometida”, em busca do Eldorado que lhes foi negado em sua condição de dominados e subalternos. As políticas de austeridade impostas pelo capital e seus representantes mundo afora deixam um rastro de desempregados e subempregados, que engrossam as fileiras dos quantos já constituíam previamente um “exército industrial de reserva”, dados os avanços tecnológicos em curso permanente. Num mundo dividido em classes sociais, há uma cruel combinação de entusiasmo de uma ínfima minoria, que beira a euforia, e de ansiedade e dor de uma maioria, que beira o pavor. Um mundo febril, em constante mutação e conflito entre essas duas partes que o compõe, num evidente desequilíbrio de forças, favorável à primeira.

O Estado se metamorfoseia em árbitro perseverante para a manutenção da ordem ditada pelas necessidades do capital, necessidades de previsibilidade que garantam sua expansão. Controlar as multidões desassistidas, só pelo medo ou pela violência. A repressão se impõe, abandonam-se de vez as tentativas de prevenção: “En haut l’ÉTAT, en bas une poussière d’individus. Entre les deux, l’économie.” [“Acima, o Esado, abaixo um conglomerado de indivíduos. Entre os dois, a economia”]. O conflito nasce da violência e do despotismo perpétuos do mercado, da própria concorrência capitalista. Todos terminam por estar diuturnamente sobressaltados pela ininterrupta variação do que chamamos de preços de mercado: salários, lucros, juros, aluguéis e outros tipos de renda, dos quais dependem toda essa poeira de indivíduos, mudam freneticamente num piscar de olhos, ao mesmo tempo em que retiram de muitos para dar a poucos, uma espécie de Robin Hood às avessas, deixando uma imensa maioria perplexa e impotente diante do giro permanente e sôfrego do “moinho satânico”, como bem nomeou Karl Polanyi.

Ação e reação se alternam. O Estado intervém com seus instrumentos repressivos e convenientes para intimidar a população, incutir-lhe o medo, controlar seus “exageros”, pacificar-lhe a “alma” e suas pulsões de morte.

Gouverner par la Peur foi escrito tendo como base a França metamorfoseada pelas políticas neoliberais, indicando com extrema clareza que a essência do capitalismo “c’est le fouet et la peur” [“é o chicote e o medo”]; “une société fondée sur l’incertitude et l’angoisse” [“uma sociedade fundada na incerteza e na angústia”]; “la société de marché, fondée sur l’instabilité” [“a sociedade de mercado, baseada na instabilidade”]. Contudo, como bem relembrou Arantes em sua intervenção, a respeito do capitalismo brasileiro, “estamos no centro do capitalismo”, “nós somos a verdade do Centro”, e o fenômeno do medo, pois, nos assombra a todos.

Fonte: Outras Palavras .

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