A série Terra Contestada do DC não cobriu “programa de índio”

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Por Raul Fitipaldi, com fotos de Marcela Cornelli, para Desacato.info.

Numa sexta-feira de praia, um sol para cada um, índios, sem terra, negros e estudantes, todos marcharam a caminho da Assembleia Legislativa para protestar contra a reportagem Terra Contestada, série de notas do Diário Catarinense com relação aos territórios indígenas em Santa Catarina. Essa produção não se fez presente, no entanto, no programa que as etnias indígenas e outros movimentos sociais organizaram em defesa dos seus direitos históricos e humanos. Os brancos chamariam a uma caminhada destas, sob um sol tão forte, “programa de índio”, e era. Um programa bonito, pacífico e justo.

O seriado apologético aos interesses dos industriais de Santa Catarina, intitulado Terra Contestada, terminou com uma entrevista ao presidente da Federação de Indústrias do estado catarinense, Glauco José Côrte. O título que colocou à entrevista a tropa comunicacional dos ricos é esclarecedor sobre os motivos que atormentam o jornal e seus amigos ante a demorada concretização dos seus negócios: “Encarece o custo de logística”- http://diariocatarinense.clicrbs.com.br/sc/geral/pagina/terra-contestada.html_ E é isso, os recursos em favor dos indígenas os “deixa menos competitivos”.

Essa é a preocupação da elite que defende o DC, por isso, a Marcha em Defesa da Demarcação das Terras Indígenas do Morro dos Cavalos, na última sexta-feira, na privilegiada beira-mar Norte de Florianópolis, não estava na sua pauta. Isso o DC não cobre, não é sua função nem pertence a sua classe.

 

As lutas se unem, os motivos convergem

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Para um dos coordenadores da Comuna Amarildo de Águas Mornas que participou da marcha, Rui Fernando (foto acima) A Comuna se sente bem participando de uma construção diferente que este país precisa. O Povo brasileiro é esta mistura que aqui está representada, com indígenas, negros e brancos. Mesmo com essa divisão que a burguesia instiga entre cores de pele e coletivos, a gente está na rua hoje para dizer que o Povo brasileiro é um só e que tem que unificar suas lutas e sair das manifestações só corporativas, divididas por segmentos da sociedade, como a oligarquia gosta. O inimigo é o mesmo, aquele que quer a terra para o agronegócio, o latifundiário. Quem expulsa os indígenas é o mesmo que expulsa os quilombolas, e o mesmo que expulsa a população da periferia. Nosso objetivo é unificar as lutas para recuperar a terra onde produzir. Estamos felizes de estar construindo a unidade popular.” Rui Fernando ainda informou que “a Comuna Amarildo está se consolidando em Águas Mornas, já estão construídas algumas moradias e há mais duas áreas cedidas pelo INCRA para assentar as famílias. Estamos numa fase de organização e de elaboração de alguns projetos que tem a ver com a Soberania Alimentar que é o primeiro passo.”

 

A Cacica Eunice já não acredita nas instituições


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Eunice Antunes (foto acima), Cacica indígena do Morros dos Cavalos, tem uma fala mansa, doce, olhos vivíssimos. Mulher nova, tem conceitos firmes e uma percepção aprimorada dos problemas pelos que passa sua comunidade. Quando lhe falamos da antiguidade desta perseguição que sofrem os indígenas, e nos remontamos a 5 séculos atrás, Eunice não duvidou em afirmar que “A perseguição atual é mais forte que quando os europeus chegaram dentro da Nossa América. Porque na época a gente não sabia quais eram suas intenções. Hoje a gente sabe. Debatemos de igual para igual, mas, a estratégias dos brancos são mais violentas. A gente vem sofrendo essa violência de todas as formas.  É preconceito étnico, político, econômico, é bem mais agressivo do que antes.”

Perguntada sobre quem representa os interesses que assolam o Morro dos Cavalos, a Cacica Eunice expõe que “Na verdade o Morro dos Cavalos hoje tem um interesse muito grande por trás dele, da rede hoteleira, dos negócios imobiliários, das empresas de turismo. E lá não temos nenhum apoio. No município de Palhoça os vereadores e prefeitos são os primeiros a promover campanha contrária à demarcação. Todo o tempo negando os indígenas de lá. A gente não tem deputados. Hoje, inclusive temos lá um processo promovido no Supremo Tribunal Federal encaminhado pelo próprio governo do Estado. É muito forte.”

Quando nos interessamos em saber qual era o papel do CIMI – Conselho Indigenista Missionário, a Cacica Eunice foi enfática em dizer que “ O CIMI tem um papel fundamental pra nós como indígenas porque não é um órgão ligado a nenhuma instituição federal”.

Quisemos saber se está satisfeita com a FUNAI, e ela: “É governo. Por mais que seja pra trabalhar a favor dos indígenas, por mais que as pessoas que trabalham na FUNAI tenham a melhor boa vontade, é um órgão federal, do governo, isso diz tudo.” Conclui que para mitigar essa desesperança hoje “A gente tá se pegando muito em Nhanderu*, tá acreditando em milagre. A força maior que a gente está tendo é dos apoiadores desses outros movimentos que estão na mesma situação que nós, Sem Terra, Quilombolas. Uma coisa muito legal são os estudantes, a gente está trazendo isso para a universidade. Isso está mudando a visão sobre os indígenas e a gente está conseguindo mostrar essa realidade. Há um curso de Licenciatura Indígena na universidade. Desde que a gente entrou percebe que está mudando muito a realidade.”

Finalmente, perguntada sobre a composição da comunidade do Morro dos Cavalos, Eunice declara que são 32 famílias e a imensa maioria dos moradores são crianças. “O pior problema que temos é a BR 101” sentenciou.

Jornalistas jovens ainda tem esperança de poder expor estas realidades

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A caminhada teve a cobertura e companhia de muitos estudantes. Dentre eles, estudantes de jornalismo da UFSC e da UNISUL. Conversamos com a formanda em jornalismo da UNISUL, Madalena Giostri (foto acima) que, com muita intensidade, corria de um lado a outro da marcha para registrar fotograficamente melhores ângulos da manifestação. Queríamos saber que pode motivar aos novos jornalistas a cobrir estes fatos, enquanto a RBS, assim como outros monopólios da comunicação demitem funcionários e colegas em quantidade assustadora. E Madalena sintetizou que “O que motiva a estar aqui é a busca de um jornalismo da verdade, onde não haja misturados interesses de poder na hora de construir uma ideia. Precisamos esclarecer os fatos, a população precisa disso. Eu acredito no jornalismo! Não nesse jornalismo que é uma venda da mentira, eu acredito que ainda existem veículos éticos, e por isso penso que está havendo uma revolução no jornalismo e tenho esperanças.”

Os morros caminharam juntos pela Beira Mar

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“Nós servimos para limpar, mas, não para caminhar pela Beira Mar. Quem limpa o chão, quem limpa o banheiro, quem faz a comida na universidade é negro. A discriminação é nítida. Tudo o que terceirizado é para negro fazer. A sociedade em geral não quer ver mais essa discriminação. Aqui abaixo está tudo limpinho, lá no Morro falta saneamento básico, falta estrutura escolar, infraestrutura, tem a droga…” diz a moradora do Maciço do Morro da Cruz, Luciana de Freitas (foto acima).

Esta marcha, ao ver da Luciana “… é um marco na nossa história. Vários coletivos tínhamos eventos no mesmo dia e, pela internet, conversando, decidimos unificar as manifestações. Reunimos os índios, os amarildos, os sem terra, os quilombolas, os negros da universidade e da periferia. Agrega Luciana que: “A gente só tem a ganhar se unindo, mostrando para a população que a sociedade de Florianópolis tem essa cara negra, branca, amarela, vermelha. Essa é a Nossa Cidade e essa é a nossa sociedade, não temos só braço açoriano criando Florianópolis”.

A mídia ainda não despertou que através da união se constrói uma sociedade diferente

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A comunidade indígena de Biguaçu, município da Grande Florianópolis, também participou da Marcha. Naquela comunidade tem uma trintena de famílias e o 80% dos moradores são crianças. O Cacique Hyral (foto acima) representou aquela comunidade onde moram 204 pessoas e chamou à unidade das lutas remarcando que o significado da marcha, pela sua unidade era muito importante. “Talvez a própria mídia e a sociedade como um todo ainda não despertaram para o fato de que a sociedade é única. Através da união se consegue uma sociedade diferente, igualitária. Isto é um marco histórico que se faz na Capital. Aqui estão reunidos os movimentos sociais excluídos fortalecendo sua luta. Para poder-nos defender melhor precisamos saber o que acontece fora da aldeia e participar destas atividades”.

O Cacique Hyral afirma ser possível uma democracia direta desde que a sociedade aprenda a cobrar os direitos para ter acesso ás políticas públicas e deixar de viver uma meia-democracia. Há que pressionar o Judiciário, o Legislativo e o Executivo, sustenta.

Os Povos indígenas no Brasil são tratados como estrangeiros

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O Cacique kaingang, Krythu (foto acima), diz que depois da dizimação a população kaingang está crescendo de novo. Krythu veio participar da marcha desde a Terra Indígena Mangueirinha, no Sul do Paraná. Ele é assessor político da organização brasileira dos povos indígenas do Brasil. Também está levando às organizações indígenas do Brasil as reivindicações apresentadas na Marcha.

O Cacique kaingang diz que o preconceito contra os povos indígenas é muito grande. O prejuízo que produz a bancada ruralista no Sul, no Sudeste e no Centroeste, em benefício do plantio da soja transgênica é enorme, e agora esse mal avança sobre a região amazônica.

“Nós somos tratados como estrangeiros pelo colonizador. A educação fez questão de apagar a história dos povos indígenas do Brasil. Os empreendimentos fundiários forjaram isso e nos tratam como adversários.” apontou Krythu. Eles moram aqui há mais de 4 mil anos e os brancos apenas 500 anos, “o que é nada na história da humanidade. Somos uma civilização que resiste dentro de um país e um sistema capitalista. Uma luta contra Ásia, Europa e os Estados Unidos. É a resistência de uma formiga contra um elefante, mas, a história demonstra que não nos vencerão. Nos dizimaram e ainda assim seguimos resistindo em toda a América Latina”.

E seguem resistindo, os indígenas, os negros, os trabalhadores rurais, os pobres, as mulheres, todos resistem o domínio opressor do interesse dos ricos. Esse interesse que defende a RBS e levou à rua, com indignação e dignidade, os excluídos de Santa Catarina, e especialmente de Florianópolis e região.

Quando deixávamos a marcha, com Marcela Cornelli, perto do famoso banco redondo, na Av. Mauro Ramos, uma estudante de jornalismo se aproximou deste jornalista e lhe confessou: “Quando era adolescente sonhava com ser repórter da Globo, agora, falta um semestre para me formar e quero mais que a Globo se arrombe”. Que desapego Serginho, que desapego!

*Nhanderu, deus trovão, realizador da criação, que é conhecido no Sul das Américas, também com o nome de Iamandu, ou Yamandú.

Assistência técnica: Clarissa Peixoto.

1 COMENTÁRIO

  1. Ótima reportagem, parabéns! Ler transcrições como essas de representantes das etnias remanescentes em nossa SC, é sinal concreto de que a utopia já é fato. Acompanho esses jovens caciques guarani há 25 anos… e seus xamãs tb (alguns já com mais de 100 anos) e esbanjando sabedoria. Aweté, Nhanderu! (Deus nos abençõa!)

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