A repressão e a patologização da arte

Foto: Foco in cena

Por Rafael Siqueira de Guimarães, Ilhéus, para Desacato.info.

Revisado por Elissandro Santana.

Em tempos e espaços totalitários, ser artista fica mais difícil sempre. Não que tenha sido fácil se colocar nesse mundo ocidêntico racional desde a perspectiva da sensibilidade em algum momento, mas quando se vive momentos em que, para manter uma ordem, os aparelhos repressivos do Estado (para usar a expressão já conhecida de Althusser) são mais utilizados, a expressão política da arte torna-se coisa perigosa, bem perigosa.

Neste final de semana, soube de duas ocorrências com artistas importantes (e independentes), que são pessoas queridas, que me fizeram lembrar muitos momentos da minha trajetória como militante pelos direitos humanos e como artista. No dia em que se casava Maria Victória em Curitiba, contando com um aparato policial digno de filme hollywoodano, este aparelho foi chamado para “sossegar” um espaço independente da cidade.

Falamos da Casa Selvática que outrora foi invadida (não existe outro nome para o aparato policial realizar arrombamento e entrar numa casa vazia) por conta de uma “denúncia” de tráfico de drogas. Nesta sexta-feira, policiais militares levaram a aparelhagem de som da casa, que tem Alvará de funcionamento e estava realizando um evento cultural (Sextas Etruskas). Não eram 22 horas ainda e o limite de horário tem sido cumprido pela casa.

No sábado, o performer Maikon K teve sua instalação invadida e destruída por policiais e foi levado preso por policiais em Brasília por um suposto “ato obsceno”: trata-se da performance (re) conhecida DNA de DAN, uma das escolhidas pela artista sérvia Marina Abramovic para compor seu trabalho “Terra Comunal” no Brasil e que estava realizando circulação nacional pelo Palco Giratório do Sesc.

As Sextas Etruskas (e a Casa Selvática, no geral), assim como o trabalho de Maikon K são dissidentes. Não são dissidentes deste Estado ou deste governo. Concordo com Peter Pal Pelbart que a arte nos possibilita a criação de outros modos de existência e o trabalho dessas e desses artistas é pura potência criativa nesse mundo. Nesse mundo de policiais armados para defender uma elite que se casa com toda a pompa e aparelhagem do Estado, nesse país que esta aparelhagem é usada para um suposto “sossego”.

Não, eu não me sinto e não quero ficar sossegado. Sossego, neste contexto, é receber um “sossega leão”, como são chamadas as injeções de haloperidol administradas a pessoas em “surto psicótico”. Isto tem que ver com normatização e com a patologização da vida. O haloperidol vem uniformizado, munido de bafômetros, decibetômetros, cassetetes. Pessoas trabalhadoras inseridas em um aparelho que fortalece o micropoder, o abuso e a truculência.

A Casa Selvática, a Etruska Waters e suas convidades, o Maikon K e sua Oxumaré borram. Borram. Incomodam. Desordenam. Esta ordem aparelhada é projeto de sociedade, é de governo dos corpos que estamos falando. Na esfera da macropolítica, em tempos totalitários, tem sido bastante difícil agir, vide a truculência com manifestações, o atropelamento de direitos, a prisão de Rafael Braga e/ou o assassinato de Ricardo Silva Nascimento. Na esfera da criação de outros modos de existência, dissidentes, criativos, onde corpos outros dançam, quando a repressão expressa sua face mais violenta é mais que preocupante, é o prenúncio ditatorial.

Há uma patologização da anormalidade que atravessa a escola (vide a Escola com mordaça), as relações (vide a polarização política atual), a virtualidade (vide os tribunais das redes sociais) e chega de forma truculenta, porque só assim para segurar a criação, na arte. Querem nos calar. Pior: precisam nos calar. Somos corpos inconformes. Fazemos coisas que merecem interdição. Querem nos transtornar, nos manter em manicômios, em instituições totais. O retorno ao século XIX, à velha prática da interdição tão dissecada por Foucault, mas de outras formas porque os tempos são outros nos quais há mais poder, mais aparelhagem repressiva montada e mais tecnologias a serviço da vigilância.

Estas ações truculentas precisam ser visibilizadas; é preciso que nos unamos porque continuam a querer nos silenciar. Se espetacularizam a violência que sofremos, precisamos estar com nossos corpos inconformes criando outras espetacularidades. Não vejo de outro modo, somos máquinas de guerrilha, por isso, incomodamos tanto. Toda a minha solidariedade a Maikon K, às artistas da Casa Selvática e às colaboradoras, meu corpo também está à mostra e a postos para esse confronto. Estamos criando outros modos de existência, mesmo que essa sociedade seja o que é. “Sossegar atos obscenos” não vai adiantar, pois a obscenidade já está exposta e não tem nada a ver com corpos nus ou inconformes.

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