A reflexão que vem do campo

Por Larissa Cabral.

Fugir do aprendizado mecanicista, que quase nada exige de reflexão sobre a prática que se repete segundo moldes pré-definidos, é um desafio comum desde o ensino fundamental até o ensino superior no Brasil. Muito se fala sobre “como fazer”, pouco se questiona “por que fazer?” ou “como fazer de outra maneira?”. Raros são os momentos em que percebemos que nossa educação tem poder de transformar a sociedade e, infelizmente, mais raros são os momentos em que temos consciência de que essa transformação é necessária.

Despertar em jovens estudantes a identificação de contradições sociais e a prática de novos valores são alguns dos objetivos do Estágio Interdisciplinar de Vivência (EIV). A iniciativa também busca estimular a produção de um conhecimento popular, formando politicamente agentes comprometidos com as lutas sociais emancipatórias, referenciando socialmente o conhecimento produzido nas universidades, tão voltadas ao próprio umbigo. O EIV pretende desmitificar os olhares sobre os movimentos sociais e a percepção da prática política, econômica, cultural e cotidiana dos camponeses, fortalecendo a relação campo e cidade e propiciando a socialização entre os saberes acadêmicos e os saberes populares.

Atualmente, o EIV existe em diversos estados brasileiros, porém sua construção é autônoma em cada estado. A atividade é construída por ex-estagiários, junto a movimentos articulados da Via Campesina. São eles: o MST – Movimento dos Trabalhadores Sem Terra; o MAB – Movimento dos Atingidos por Barragens; o MMC – Movimento de Mulheres Camponesas e o MPA – Movimento dos Pequenos Agricultores.

Agarrada a minha ignorância, ao tomar conhecimento sobre a iniciativa, que já está na sexta edição em Santa Catarina, achei que se tratava de um verdadeiro centro de formação de militantes do MST, de onde sairiam com carteirinha e tudo. Não que eu queira justificar meu preconceito, mas trata-se de um raciocínio comum para alguém que foi sempre muito bem tratada – com casa, cama, escola e comida de qualidade – e criada em meio ao jornalismo de Veja e afins. As meias verdades destacam sempre o tumulto que causam esses militantes, sem tratar de forma responsável e profunda o tema da reforma agrária e a luta por direitos garantidos pela Constituição e sistematicamente ignorados pelo Estado e por grande parte da sociedade.

O estágio é dividido em três partes: preparação, vivência e socialização. No período de preparação, que compreende seis dias, os estagiários ficam reunidos em um mesmo local, geralmente um assentamento da reforma agrária, e estudam as condições que levam não só os trabalhadores do campo a se organizarem, mas também as diversas formas de opressão vigentes na sociedade, além das alternativas existentes para superá-las. Durante a preparação, os jovens são divididos em pequenos grupos, as brigadas, que se intercalam nas responsabilidades do dia-a-dia, como limpar os banheiros, auxiliar no preparo da comida e arrumar o ambiente de estudo.

Já o período de vivência me parece o mais desafiador – provavelmente, o mais enriquecedor também. Os estagiários são enviados separadamente para diversas regiões de Santa Catarina e passam 10 dias na casa de uma família camponesa, conhecendo seu cotidiano, a partir do trabalho nas lavouras e da convivência em diversos espaços. No terceiro momento, o de socialização, os jovens retornam ao mesmo local da preparação, para compartilhar as experiências da vivência e discutir formas de fortalecer na cidade as ligações com as lutas do campo.

Compartilhamento de saberes

A convite da Coordenação Político-Pedagógica do VI EIV/SC, o portal Desacato esteve em Catanduvas, no Meio-Oeste de Santa Catarina, no sábado (26), para participar de um debate sobre mídia. A atividade fazia parte da grade de programação do primeiro momento do estágio, a preparação, que contou com a discussão de diversos temas, no decorrer da semana.

O EIV é resultado da articulação do movimento estudantil com a Via Campesina, uma espécie de processo de formação política, que utiliza como referência o método pedagógico do Instituto Josué de Castro – ITERRA, organizado em tempo-aula, tempo-trabalho, tempo-descanso, que neste ano está sendo realizado do dia 21 de janeiro ao dia 10 de fevereiro. Tendo como foco os movimentos sociais, o EIV utiliza a educação popular como método de ensino-aprendizagem.

No início da manhã, ao chegar no Centro de Formação Olga Benário, localizado no Assentamento 25 de julho, onde moram oito famílias, cerca de 30 jovens – alguns sentados no chão, outros em carteiras dispostas em forma de “U” – assistiam ao vídeo “Levante a Sua Voz”, do coletivo Intervozes. A produção foi apresentada por Fábio Reis, que há 10 anos trabalha na comunicação do MST, movimento que conhece bem, não só pelo tempo de trabalho, mas por ter nascido e ainda morar em um assentamento.

Reis destacou que, atualmente, o núcleo de comunicação do MST, o qual atua por meio de seis frentes, tem como objetivo ampliar o diálogo com a sociedade, prezar pela atuação e representação dos dirigentes, reforçar a legitimidade do movimento e qualificar a assessoria de imprensa do mesmo. O jovem também fez uma breve retrospectiva dos principais atos do MST e quais foram suas repercussões na mídia, destacando a Marcha dos 100 mil, a CPI da Terra e a CPI das ONGs. Segundo o assessor, o principal desafio da comunicação do movimento é colocar a reforma agrária em discussão e buscar maior articulação entre os veículos de comunicação de esquerda.

Criminosos, terroristas, baderneiros

No período da tarde, as advogadas Daniela Cristina Rabaioli, da Assessoria Jurídica Popular, e Liliam Litsuko Huzioka, que já fez parte do grupo, abordaram a criminalização dos movimentos sociais. O tema foi introduzido pelo vídeo “Por Longos Dias”, que por meio das palavras de José Saramago (prefácio da obra Terra, de Sebastião Salgado), apresenta de forma poética a luta pela reforma agrária e casos como o massacre de Eldorado dos Carajás.

Daniela e Liliam abordaram os diferentes significados e sentidos dados a conceitos básicos levantados pelos jovens do EIV após assistirem ao vídeo, como Lei, Justiça, Subversão e Direito e contaram sobre suas experiências voltadas à defesa dos movimentos sociais e à luta pela terra, destacando que atualmente, no Brasil, mais de 4 milhões de famílias estão nessa situação. Para elas, vivemos nesta ordem que não é natural, contudo, é naturalizada, por meio de uma construção histórica, na qual imperam a desigualdade e a injustiça (seletividade penal) e, por isso, a radicalização às vezes é necessária. Entre os casos lembrados pelas advogadas, está a Ocupação Contestado, em São José, e outro caso mais antigo, em Imbituba, no Sul do Estado.

As palestrantes mostraram que o Estado limita a democracia para a manutenção da ordem, por meio de regras normatizadas que não preconizam uma mudança profunda na sociedade e no sistema. Assim, resta aos magistrados fazer um uso anti-hegemônico de ferramentas hegemônicas, até que se mude o sistema. Liliam destacou que, muitas vezes, no caso do Direito, a escolha da profissão é feita objetivando ascensão social, o que acaba resultando em um ensino jurídico elitizado.

Ensinamentos

O momento mais esperado do dia era o da revelação dos destinos que teriam os jovens para o período de vivência. O local foi apresentado em forma de carta, escrita por cada coordenador de brigada e entregue com muito carinho a cada um após a realização da última “mística” – atividade lúdica, que a cada dia foi realizada por uma das brigadas. Para a última mística, a qual acompanhei com muita ansiedade e emoção, todos os estagiários, sempre cúmplices e solidários, tiveram que dar as mãos e percorrer um trajeto de olhos fechados, atividade que buscava estimular a confiança no próximo.

Ao chegarem em frente ao Centro de Formação, os jovens foram posicionados em círculo, ainda de olhos fechados, e de mãos dadas ouviram um dos coordenadores ler um texto sobre a luta pela terra, enquanto as outras coordenadoras estimulavam os sentidos dos participantes, produzindo sons com enxadas, colocando punhados de terra e grãos nas mãos dos jovens e borrifando água em seus rostos. Dentro do círculo havia um tecido, com um nó em frente a cada pessoa. Antes de receberem suas cartas, os estagiários tiveram que desatar esses nós, que eram pessoais e ao mesmo tempo coletivos: o medo, a injustiça, a ganância, a desigualdade, a intolerância, entre outros.

Os estagiários receberam com muita alegria a definição de onde passariam os próximos dias de vivência e a celebração foi oferecida pelos moradores do Assentamento 25 de julho: churrasco e apresentação de música. Tímida, Eliane se sentou ao meu lado, enquanto serviam o jantar e, após me contar que morava na casa “mais em cima”, indicou com a cabeça o seu filho. O menino tem sete anos e acompanhou diariamente as atividades do EIV. “Eu sou de Curitibanos, minha mãe ficou viúva e, se não fosse pelo movimento, ela não teria condições de trabalhar e ainda cuidar de mim e dos meus irmãos”, sintetizou Eliane, que foi criada em acampamento e atualmente tira seu sustento da terra em que está assentada e onde cria seu filho, ao lado do marido.

É com uma humildade muito grande que os assentados (e militantes do MST) abrem as portas de suas casas e compartilham seus conhecimentos. E é com uma sabedoria maior ainda e uma força admirável que lutam diariamente pelo respeito, pela igualdade e pelo direito de viver com dignidade. Por oportunizar a aproximação de jovens com esse movimento, objetivando uma abertura de consciência, o EIV é uma iniciativa louvável, que deve ser preservada e difundida nas universidades. Antes fosse um estágio obrigatório.

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