A pequena marca da loucura

Por Míriam Santini de Abreu.

Não sei se é coisa do ofício ou se é do humano. Eu, galé no mar, onde navegam tantas outras, sinto com freqüência o pulsar dos remadores. Se estão famintos, saciados, cansados, bem dispostos. Sinto quando alguém ergue um muro invisível em volta de si, tensa a musculatura, embaçados os olhos. E se muro há, respeito e me mantenho longe. Mas os que amo são aqueles que, remando na galé do corpo, roçam em mim a alma. Duas galés que se tocam, e os remadores dentro de cada uma farejam águas, temperos, suores em comum. E mais: farejam no outro “a pequena marca da loucura”. E quando estão em terra, galés e remadores, os vejo sorrir, lavar peixes na madrugada, lançando um ou outro aos telhados, onde aves os levarão de volta às águas. Não sei o que instiga o farejar, não sei porque galés passam, tantas, e mal as diviso no horizonte. Não sei porque, num vespertino ou num matutino, uma certa galé um dia sai do nevoeiro leve e choca-se com a minha. Mas não adernam. Se enlaçam, duas galés no mesmo tempo, no mesmo espaço, a balançar nas mesmas águas, com remadores a farejar, um no outro, suas pequenas marcas de loucura. Na verdade, sei. Mas não compreendo, e nem quero compreender. Se a gente compreende demais, fica com pudor de farejar. Com pudor de viver.

 

Imagem: pracadarepublica.weblog.com.pt

 

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