A morte de uma criança de origem haitiana não é um ‘detalhe’.

Por Claudia Weinman, para Desacato. Info. 

O falecimento de uma criança de origem haitiana, na terça-feira, dia 19 de julho de 2016, na creche do Bairro Santa Rita, em São Miguel do Oeste- SC, causa dor em todos/as nós. Os motivos ainda estão sendo investigados. É preciso que a gente se solidarize com Marie Roseline Jean Philipe e Jean Claude Uan, pais da menina Glória, de apenas sete meses de vida. No final do ano passado, durante uma das visitas feitas por lideranças da Paróquia São Miguel Arcanjo, de São Miguel do Oeste, no bairro Progresso, onde residem, a família comemorava  a chegada da filha em meio a tantas dificuldades que o povo haitiano vem sofrendo em nossa cidade e em toda a região do Oeste Catarinense.

A informação nos chega dolorida, e sabemos que uma notícia dessas merece no mínimo, sensibilidade. É um ser humano, é um/a de nós, mas é também uma criança de origem haitiana, que carrega uma história nada tranquila, de muitos conflitos, perdas, dores, sofrimento. Mas isso, não sensibiliza a mídia burguesa, essa, que divulga o fato sem nenhum olhar de condolência. Mesmo compreendendo que nada devemos esperar destes veículos de comunicação, quando tratam as nossas gentes como um simples ‘detalhe’, dói muito e foi dessa forma, que o falecimento da menina Glória foi divulgado. Alguns veículos de comunicação ainda falaram sobre o fato de uma menina de origem haitiana ter sido encontrada sem vida, mas outros, omitiram a verdade, trataram a perda de uma vida como um simples fato, negando o sangue, a história, a cultura de Glória e considerando estes elementos como ‘especulação’.

“O que importa saber que era uma menina de origem haitiana afinal? Quem se importa com isso”? Perguntaram-nos. Nós nos importamos e muito. Conhecemos de perto o sofrimento dos/as nossos/as irmãos/as haitianos. Sabemos que desde a sua chegada no município de São Miguel do Oeste, o preconceito, o racismo, a falta de ternura da sociedade migueloestina é determinante para que este sofrimento seja ainda maior. Em uma cidade, onde pessoas desfilam com a bandeira do ‘Sul é o Meu País’, como acham que nossas gentes sentem-se? Acolhidos/as? Protegidos/as? Bem vindos/as? Não.

Desde que chegaram nesta terra, que não é nossa, e sim, da mãe, pátria grande, algumas empresas negaram um salário digno, e teve empresa que atrasou e continua atrasando os salários dos trabalhadores/as haitianos por meses. Em alguns mercados, mesmo os proprietários sabendo da dificuldade desses trabalhadores/as em não receber o salário, foram capazes de negar a venda de produtos, de alimento e por várias vezes, a partilha destes itens foi necessária e feita por pessoas que acompanham o processo de vida dos haitianos/as que estão em nossa região.

Porque não falar que esta menina é de origem haitiana? Perguntamos mais uma vez. Nosso povo sabe e sente que em muitos casos, a mídia local, divulga um fato envolvendo um negro, um indígena, um morador da periferia, de maneira ‘sensacional’. Chamam de ‘ladrões’, fazem parada no centro da cidade para deter os adolescentes pobres  sem nenhuma estrutura familiar, educacional, e intitulam estes como delinquentes, instigando nas informações o ódio, a morte, mas não falam de suas histórias, origens, realidades, o porquê roubaram uma camiseta de R$ 10,00, por exemplo. Retiram da sociedade o compromisso de ajudar estes jovens, como se você e eu não tivéssemos nada a ver com a vida coletiva, em comunidade, em sociedade. Uma criança nascida no Brasil cujo os pais são haitianos, não perde o seu sangue, a sua origem, a sua cultura, a sua história pelo fato de ter nascido aqui ou em qualquer outro lugar do mundo. A questão é que a imprensa burguesa não está interessada na vida e na história dessa criança, mas em uma notícia que chama atenção, dá audiência, comove, mas não emancipa.

A imprensa tem sim um papel social profundo a cumprir

Depois da escola, que é um espaço de comunicação também, a imprensa exerce um poder incalculável sobre as pessoas. É neste meio que o profissional Jornalista, orienta as manchetes, transfere as falas das fontes para o papel de acordo com o que ele determinar e selecionar ser importante para o leitor. A partir do momento que o Jornalista faz esta opção, de selecionar, filtrar as informações, ele assume uma postura ideológica. Ele decide sobre narrar ou não a história das pessoas envolvidas em uma reportagem, e quanto a isso, quando existe um descompromisso com a vida coletiva, com a cultura e a história de sofrimento de um povo, reproduzem-se cada dia mais releases, manchetes miseráveis sobre os povos. Os meios de comunicação passam a ter um interesse maior sobre a quantidade de acessos em uma notícia.

 Atuar no jornalismo é uma opção ideológica, ou seja, definir o que vai sair, como, com que destaque e com que favorecimento, corresponde a um ato de seleção e de exclusão. Esse processo é realizado segundo diversos critérios, que tornam o jornal um veículo de reprodução parcial da realidade. Definir a notícia, escolher a angulação, a manchete, a posição na página ou simplesmente não dá-la é um ato de decisão consciente dos próprios jornalistas. É sobre a notícia que se centra o interesse principal no jornalismo. (MARCONDES FILHO, 2009, p. 76, grifo do autor).

Ao tratar sobre a morte de uma menina de origem haitiana, disseram-nos: “Eu decido sobre o meu trabalho”, e de fato, o Jornalista decide o que vai escrever e como fará isso, no entanto, é preciso considerar que a imprensa tem sim um papel social profundo a cumprir. Quando a ‘Favela’ é notícia nas rádios, televisões e jornais, ouvimos no rádio, por dezenas de vezes, a repetição da notícia, o nome da família dessa realidade, a cor, a origem, mas quando temos uma notícia dolorida como a morte desta menina de origem haitiana, a imprensa trata sua origem como um ‘detalhe’.

Sabemos que isso é consequência da mudança no fazer Jornalístico inserido dentro de um sistema Capitalista de produção. O processo até a chegada da informação ao público é complexo, e há necessidade contingente de levar em consideração todo o processo social, econômico em que a imprensa está envolvida. O jogo de interesses que move um veículo de comunicação é amplo demais e quando se fala em fazer jornalismo com imparcialidade, o próprio conceito se perde em nuances da publicidade e da consequente mercantilização da notícia.

A fragmentação da história em contextos desconectos da realidade, tem refletido também em páginas tabuladas de jornais, em programas de rádio, conteúdos da internet e programas na televisão descomprometidos. O midiativismo, a rapidez, a utilização constante de releases interferem significativamente na transmissão da mensagem, não sendo possível passar para o público leitor, uma visão dos diferentes.

Há na maioria das vezes, uma repetição de discursos que tendem a cristalizar cada vez mais a imagem dos marginalizados pela imprensa e o sistema capitalista ao longo dos anos. Essa mesma cristalização que, movida pela indústria cultural, tende a fazer com que as pessoas não questionem a sociedade, o sistema, a forma de trabalho, as desigualdades sociais. Mas reflete na competição entre o melhor e o pior, sem refletir sobre o porquê existe essa naturalização das coisas.

Nesse contexto, Marcondes Filho (2009), faz uma crítica ao jornalismo. Segundo ele, a forma de se fazer notícia no mundo midiático ultrapassa qualquer valor do Jornalismo como arte e técnica de falar sobre as realidades. Para o autor, a mercantilização deste fazer, prejudica de forma intensa os que acompanham o mundo pelo viés jornalístico e dependem dele para se manter informados.

As condições do sistema capitalista são vistas para o autor, como formas de sabotagem da informação, retratando na mente coletiva inverdades capazes de definir rumos, de mover pensamentos e desenvolver ideologias acostumadas com o que o capitalismo diz ser normal.

A crítica que se faz ao jornalismo feito sob condições capitalistas é a de que é da essência do modo de produção capitalista ´produzir esse tipo de imprensa. A mercantilização da informação, seu duplo caráter, a aparência do valor de uso são peças-chave na organização capitalista da atividade econômica e da sua perpetuação. Ora, uma sociedade não estruturada sob as bases de exploração do lucro e do trabalho assalariado levaria, em tese a um tipo de jornalismo menos alienador e menos manipulador. Ocorre que esse raciocínio ignora que a informação veiculada publicamente e assim explorada encerra em si- em decorrência mesmo do seu tratamento jornalístico- uma inseparável função manipulativa. A manipulação não é apenas furto do ato premeditado, intencional. A manipulação é parte integrante, necessária, da transmissão jornalística (MARCONDES FILHO, 2009, p. 103-104).

Marcondes Filho (2009) reforça a ideia de que o imaginário coletivo é fruto da repetição de notícias voltadas a determinados interesses e grupos capitalistas. Ele utiliza-se da forma crítica Marxista para dar ênfase ao processo de construção de mentes que envolve o jornalismo atual. Conforme ele, a produção de notícias precisa ser explicada pelo viés econômico e político da realidade que se instaurou no país nos últimos anos.

O Jornalismo para ele, forja-se a partir do objetivo de manipulação de mentes, da reprodução em escala das notícias. O Jornalismo investigativo segundo o autor ainda existe, no entanto, é praticado em poucos meios de comunicação.

Criar jornais é encontrar uma forma de elevar a uma alta potência o interesse que tem indivíduos e grupos em afirmar publicamente as suas opiniões e informações. É uma maneira de se dar eco ás posições pessoais, de classe ou de nações, através de um complexo industrial-tecnológico que, além de preservar uma suposta impessoalidade, afirma-se, pelo seu poder e soberania, como “a verdade” (MARCONDES FILHO, 2009, p. 75).

É relevante que façamos a análise: Em que momento as vozes silenciadas pelo sistema aparecem? Ou elas simplesmente desaparecem do plano midiático? As populações nativas não inseridas politicamente no modelo de sociedade vigente e com quase nenhuma possibilidade de defesa do que é reproduzido nos veículos de comunicação de massa, também foram sendo “esquecidas” na história da imprensa. Isso porque, ao representar interesses de manutenção capitalista, a possibilidade se esvai, abrindo espaço para outras fontes mais interessantes ao novo modo de produzir e divulgar notícias.

Por isso o autor diz que a imprensa perdeu a inocência de ser defensora dos pobres e afirma que as massas nunca quiseram estar no poder. Mas, mesmo assim, apesar de toda a análise catastrófica do fazer jornalístico da sua pretensa morte, ele ainda crê na potência da imprensa como pátria dos revoltados, logo, crê no jornalismo como uma possibilidade de crítica, denúncia e insubmissão. Lembra que não se trata de resgatar mitos de uma modernidade falida, como a objetividade, a clareza, a transparência, mas sim, manter o caráter de denúncia que sempre caracterizou o jornalismo. Assim, ainda que decretando a morte do jornalismo, paradoxalmente Marcondes Filho parece que ainda crê na sua ressurreição (TAVARES, 2011, p. 101).

Diante da compreensão de que precisamos efetivamente construir meios de comunicação responsáveis, comprometidos com a causa da vida, é que deixamos registrada a nossa profunda solidariedade aos nossos\as irmãos\as haitianos\as de São Miguel do Oeste. Por esta dor, este sofrimento e por sua luta constante pela sobrevivência em um país que ainda precisa compreender a diversidade, a cultura, a história, a vida. Recordo aqui, o dizer de um menino Cubano: “Nossos interesses coletivos precisam estar acima dos interesses individuais”, e com isso, entendemos a necessidade de construir uma comunicação que liberte, que não esteja a serviço de poucos buscando audiência. Que fique registrado que a vida da Glória, que a vida do nosso povo não é um ‘Detalhe’, que a sua origem não é ‘Especulação’. Quando narramos as realidades precisamos no mínimo, sensibilidade, humanidade, não podemos ser indiferentes, é nossa tarefa, compromisso SER HUMANO.

Fonte foto de capa: EFE/Ulises Rodríguez.

Texto com  referências de:

MARCONDES FILHO, Ciro. Jornalismo fim sciécle. São Paulo: Scritta, 1993.

______. Ser jornalista: A língua como barbárie e a notícia como mercadoria. São Paulo: Paulus, 2009.

TAVARES, Elaine. Em busca da utopia: os caminhos da reportagem no Brasil dos anos 50 aos anos 90. Pobres e Nojentas, 2011.

Com as contribuições ainda do Coletivo da Pastoral da Juventude do Meio Popular (PJMP), Pastoral da Juventude Rural (PJR) e Paróquia São Miguel Arcanjo.

 

 

 

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