A matemática esperta da “Folha” e o projeto por trás dela

Por Saul Leblon.

Manchete da Folha deste domingo estampa ‘grave denúncia’:

“Programa social consome a metade dos gastos federais”.

Só profissionais da dissimulação conseguem vender como jornalismo manipulações grosseiras como essa, feitas para alimentar o alarido da agenda conservadora.

A saber:

a) que a política econômica do governo do PT não passa de uma bolha de consumo atrelada à enorme ‘bolsa esmola’, ao custo de R$ 405,2 bi;

b) que o consumo de massa é mantido de forma artificial, com gastos assistencialistas – e reajuste abusivo do salário mínimo, a pressionar o sistema previdenciário;

c) que tudo isso é inflacionário porque desprovido da expansão dos demais ingredientes que sustentam a oferta (como se o hiato do investimento fosse um fato cristalizado);

d) que o conjunto subtrai recursos ao sagrado superávit primário, impedindo o Estado de canalizar maiores fatias aos rentistas da dívida pública;

e) que a solução é restaurar a agenda do Estado mínimo, com política salarial que desguarneça o núcleo desequilibrador da pirâmide de renda: o ganho real de 60% do salário mínimo no governo Lula.

Em resumo: PSDB na cabeça em 2014.

Dois disparos à queima-roupa denunciam a pistolagem atirando deliberadamente contra os fatos no alerta domingueiro da Folha.

A ‘grave denúncia’ apoia-se, de um lado, num truque contábil.

Ele pode ser pinçado de dentro de uma única e miserável linha do texto:

‘Foram excluídos da conta os encargos da dívida pública’. 

A partir daí até camelo passa no buraco da agulha.

A pequena confissão subtrai do conjunto das comparações algo como R$ 200 bilhões.

Média do que custou o pagamento dos juros da dívida pública nos últimos anos.

Só os juros.

Não estão computadas aqui as despesas com amortizações e rolagens, que elevam o fardo rentista a quase 50% do gasto orçamentário federal, engessando-o para investimentos em saúde, educação etc.

São ‘pequenas’ elipses.

Mas são elas que tornam possível entregar o percentual encomendado pela manchete domingueira: ‘programa social consome a metade dos gastos federais’.

O segundo desvão da calculadora dos Frias engole aspectos cruciais da previdência social urbana.

No texto, ela é a ante-sala do inferno fiscal: equivale a 60% dos tais ‘gastos sociais’ do Estado brasileiro.

Um buraco de R$ 245,5 bi. (O Bolsa Família soma modestos 5% do total, R$ 20,5 bi, o que o impediria de sustentar a ‘grave denúncia’ da ‘Folha’)

A rigor tampouco a previdência o permite, exceto manipulada no liquidificador do jornalismo esperto.

Aos fatos.

A previdência urbana é superavitária desde 2007, graças à criação de 16 milhões de empregos com registro em carteira nos governos Lula e Dilma.

Em 2012, ela teve o melhor resultado de sua história: um superávit de R$ 25 bi.

O saldo cobre quase 35% do déficit da previdência rural, que estendeu o salário mínimo aos idosos do campo, privados de direitos trabalhista pelos mesmos interesses que hoje reclamam equilíbrio fiscal.

A transferência de uma renda mínima aos sexagenários rurais teve os seguintes desdobramentos:

a) a renda rural nos últimos seis anos cresceu 36% a mais do que o próprio PIB;

b) a previdência rural – que a agenda ortodoxa quer extinguir ou desvincular dos ganhos do mínimo – tornou-se um dos principais fatores de dinamização dos municípios no interior do país;

c) a década do governo Lula foi a primeira, em 60 anos, em que o êxodo rural no Brasil se estabilizou.

É uma pequena reviravolta histórica.

Deveria ser aprofundada, melhor debatida, retificada em suas lacunas, pesquisada e fortalecida em seus desdobramentos virtuosos.

Mas quem o fará?

Por certo, não a matemática esperta da Folha.

Por precaução eleitoral, ela cuida também de desqualificar os desdobramentos efetivos da ‘gastança social’ que condena.

A mensagem do conjunto reflete a mentalidade regressiva de um conservadorismo incapaz de se renovar.

Exceto em seu repertório de truques e traques, entre os quais se abriga o recado domingueiro da Folha:

‘Devolvam o país aos mercados; eles sabem como fazer a coisa certa’.

—————

* Obs 01:

O direito ao salário mínimo chegou ao campo com o Estatuto do Trabalhador Rural, criado em março de 1963. O Fundo de Assistência e Previdência do Trabalhador Rural – denominado FUNRURAL, surgiu em 1969. Seu efeito prático, todavia, foi quase nulo porque a lei não previa a contrapartida de recursos para efetivá-la. O Programa de Assistência Rural (PRORURAL), criado em 1971, definiu a aposentadoria rural por idade somente para quem tivesse acima de 70 anos. Valor: ½ salário mínimo. Foi a Constituição de 1988, complementada pelas Leis 8.212 (Plano de Custeio) e 8.213 (Planos de Benefícios), de meados de 1991, que estendeu aos idosos e inválidos do setor rural o direito efetivo à aposentadoria por idade, equivalente a um salário mínimo, equiparando-os assim aos trabalhadores urbanos em condições semelhantes. A recuperação do poder de compra do salário mínimo no governo Lula, com um ganho real da ordem de 60% sobre a inflação, integralmente repassado aos aposentados do campo, deu-lhes um protagonismo econômico e social que nunca tiveram na história do país. A faixa de renda popular –chamada ‘classe C’– saltou de 20,6% da população rural em 2003 para 35,5% dela em 2009,em grande parte graças às transferências do Bolsa Familia e da previdência rural. O livro “Superação da Pobreza e a Nova Classe Média no Campo” , de Marcelo Neri, atual presidente do Ipea, traz dados detalhados sobre o tema.

Obs 02

A separação entre as contas da previdência rural e urbana foi oficializada apenas em 2010. Mas desde 2007 o déficit global do sistema já estava em declínio, graças ao maior volume de arrecadação, decorrente da significativa criação de empregos com carteira assinada sob o governo Lula. Em 2009, a Previdência Urbana –antes portanto da separação de contas entre rural e urbana– registrou saldo positivo de R$ 3,6 bilhões de reais.(05-02; 09:22)

Foto: Carta Maior

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