A masculinidade tóxica não é uma doença

Foto: Captura de tela de Goat (2016) vía YouTube/MTV

Por Slavoj Žižek, via Spectator.

Tradução: Matheus Cornely.

Para enfrentar essas novas e sutis formas de opressão, indivíduos corajosos de ambos os sexos, dispostos a assumir riscos, são mais necessários do que nunca.

Durante a era soviética, o notório Instituto Sherbsky, em Moscou, era bastante conhecido por categorizar dissidências como doenças mentais, caracterizadas por ilusões de grandeza, obsessão patológica com ideais de justiça e desconfiança nos valores socialmente aceitos. Eles afirmavam terem identificado distúrbios neuronais que causavam tais patologias e, como esperado, propuseram drogas que curavam tais distúrbios. Seria essa apenas uma memória dos velhos e sombrios tempos de comunismo? Não exatamente. O mesmo não acontece hoje? Em um recente pronunciamento público, a American Psychological Association (APA) proclamou que a “masculinidade tradicional” é tóxica. Aqui estão as exatas palavras que, de alguma maneira, entraram no espaço público sem corar de vergonha:

Traços da chamada ‘masculinidade tradicional’, como suprimir emoções e mascarar a angústia, muitas vezes começam cedo na vida e têm sido associados a uma menor vontade de buscar ajuda em meninos e homens, a uma maior propensão aos riscos e à agressividade – possivelmente ferindo a si próprios e àqueles com quem interagem.

Um leitor atento não poderia deixar de notar a mistura de ideologia com expertise neutra: um forte gesto ideológico de excluir fenômenos considerados inaceitáveis está posto como uma descrição neutra de fatos médicos. Sob o disfarce de uma descrição médica, estamos impondo uma nova normatividade, uma nova figura do inimigo. Nos velhos tempos de heterossexualidade normativa, a homossexualidade era tratada como doença — lembremos o tratamento brutal ao qual Alan Turing e muitos outros foram submetidos. Agora é a própria masculinidade que é medicalizada, transformada em uma doença a ser enfrentada – não devemos nos surpreender se terapias químicas para curar a masculinidade tóxica estiverem disponíveis em breve.

Ao justificar este diagnóstico, a APA fala de poder, patriarcado e opressão feminina. Mas tudo isto não deve ofuscar a brutalidade ideológica da operação. Não nos deixemos esquecer que estamos lidando com a APA, a ala psicológica do establishment médico, o que significa que nós estamos lidando com nada menos do que uma mudança na hegemonia ideológica dominante.

Os contornos dessa mudança tornam-se claros no momento em que damos uma olhada mais de perto na lista de características que definem a “masculinidade tóxica”: suprimir emoções, mascarar a angústia, dificuldade para procurar ajuda e propensão a assumir riscos mesmo diante do perigo de se machucar.

O que é tão especificamente “masculino” nesta lista? Ela não descreve mais adequadamente um simples ato de coragem diante de uma situação difícil, em que, para fazer a coisa certa, é preciso suprimir as emoções, não podendo contar com nenhuma ajuda, correndo um risco e agindo, mesmo que isso signifique se prejudicar?

Façamos um breve desvio. Um dos poucos convincentes argumentos para a noção de masculinidade tóxica vem de George Monbiot, em uma matéria do The Guardian:

Por que tantos homens gostam de Jordan Peterson e odeiam a propaganda da Gilette? Se eles fossem realmente fortes, não precisariam provar sua virilidade

De forma breve, se homens realmente são fortes, por que muitos deles (incluindo Piers Morgan, que teve um colapso no Twitter) reagem com tanto pânico ao alerta da APA sobre a masculinidade tóxica? Um homem forte não iria simplesmente ignorar tais ataques à sua masculinidade como se fossem as reclamações de um fracote?

Incidentalmente, o mesmo ocorre no pânico populista anti-imigrante. Quando Angela Merkel convidou refugiados para virem à Alemanha, seu ato exaltou a confiança de que a Alemanha poderia fazer isso, de que o país é forte o suficiente para manter sua identidade ao aceitar refugiados. Apesar do gosto de patriotas anti-imigração por posarem de fortes defensores da nação, é a posição deles que entrega pânico e fraqueza — quão pequena deve ser a fé deles na nação alemã quando tomam como ameaça à identidade alemã algumas centenas de novos imigrantes? Por mais insano que pareça, Merkel agiu como uma forte patriota alemã, ao passo em que os militantes anti-imigração foram miseráveis fracotes.

Esses são sinais de que a fraqueza é essencial para que ocorram as mais brutais demonstrações de masculinidade tóxica. Mencionemos os assassinatos em série de mulheres em Ciudad Juarez, na fronteira com o Texas: eles não são apenas patologias privadas, mas uma atividade ritualizada, parte de uma subcultura de gangues locais (primeiro estupros coletivos, depois tortura até a morte que inclui cortar mamilos com tesouras etc). Os assassinatos tinham como alvo jovens mulheres que trabalhavam em novas montadoras — um claro caso de reação machista à nova classe de mulheres trabalhadoras independentes. Mas e se essas reações violentas apontassem para um núcleo violento da própria masculinidade, que explode abertamente quando seu reinado é ameaçado? Verdade, mas por isso não se deve rejeitar o tipo de pessoa forte e disposta a correr riscos. Deve-se, pelo contrário, dessexualiza-lá e, sobretudo, procurar o que substitui tal pessoa.

Alain Badiou nos alertou anos atrás sobre os perigos da crescente ordem niilista pós-patriarcal que se apresenta como um domínio de novas liberdades. A desintegração da base ética comum de nossas vidas está claramente sinalizada pela abolição do recrutamento militar universal em muitos países desenvolvidos: a própria noção de estar disposto a se sacrificar em nome de um exército que luta por uma causa comum torna-se mais e mais sem sentido, senão ridícula, chegando ao ponto em que as forças armadas enquanto corpo em que todos os cidadãos igualmente participam está gradualmente se transformando em uma força mercenária. Essa desintegração afeta diferentemente os dois sexos: homens estão gradualmente se convertendo em adolescentes perpétuos sem qualquer passagem de iniciação que lhes permitiria decretar sua entrada na maturidade definida (o serviço militar e a conquista de um emprego, nem mesmo a educação cumpre esse papel).

Não é de admirar, então, que, para suprir essa carência, gangues pós-paternas de jovens proliferam, proporcionando uma iniciação substitutiva [ersatz-initiation] e uma identidade social. Em comparação aos homens, as mulheres são hoje cada vez mais precocemente maduras, tratadas como pequenas adultas, com o dever de que controlem suas vidas, planejem suas carreiras etc.

Nessa nova versão da diferença sexual, homens são adolescentes lúdicos, foras-da-lei, enquanto mulheres aparecem como duronas, maduras, sérias, legalizadas e punitivas. Mulheres hoje não são interpeladas pela ideologia dominante a serem subordinadas, são interpeladas – solicitadas e induzidas – a serem juízas, administradoras, ministras, CEOs, professoras, policiais e militares.

Uma cena paradigmática que ocorre diariamente em nossas instituições de segurança é essa em que uma professora, juíza ou psicóloga toma conta de um jovem delinquente antissocial. Uma nova figura feminina está surgindo: a fria e competitiva agente do poder, sedutora e manipuladora, provando o paradoxo em que, como afirma Badiou, “nas condições do capitalismo, mulheres podem se sair melhor do que homens.” Isso, é claro, de forma alguma torna as mulheres suspeitas agentes do capitalismo; apenas sinaliza que o capitalismo contemporâneo inventou sua própria imagem ideal de mulher: uma figura que representa o frio poder administrativo com rosto humano.

Para enfrentar essas novas e sutis formas de opressão, indivíduos corajosos de ambos os sexos, dispostos a assumir riscos, são mais necessários do que nunca.

 

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