A luta pelo tempo de trabalho e a reforma trabalhista: os 200 anos do nascimento de Marx

Casa de trabalho forçado na Inglaterra, durante a época vitoriana

Por Lucas Rodrigues, para Desacato.info.

Nessa semana do dia do trabalhador também se completam os 200 anos do nascimento de Karl Marx. Sua teoria foi um impulso para as lutas e reivindicações da classe trabalhadora, e principalmente permitiu uma compreensão do papel revolucionário dessa classe na história. Se as ideias importam, não é exagero considerar que o trabalho de Marx deixou sua marca em todo o século XX.

No entanto, após 200 anos de seu nascimento e 150 anos de sua obra principal, a explicação do modo de produção capitalista ali apresentada teima em permanecer atual. A recente reforma trabalhista aprovada no país expressa, por exemplo, um elemento central de seu pensamento: a disputa entre trabalhadores e capitalistas pelo tempo de trabalho.    Para Marx, a ascensão do capitalismo foi marcada por um elemento fundador, qual seja, a separação daqueles que trabalham e produzem dos materiais e elementos necessários para realizar a produção. De uma forma mais clara, a existência do trabalhador sem a propriedade dos meios de produção. A reunião desses dois elementos, indissociáveis para a reprodução da vida, se estabeleceu nesse sistema através do mercado de trabalho. Surgiu assim, na sociedade moderna, um ator novo: o trabalhador assalariado.

Apesar de hoje essa separação entre trabalhadores e meios de produção e a existência do trabalho assalariado parecerem naturais, sua naturalização se deu por um longo processo de violência. Na Inglaterra, por exemplo, entre os séculos XVII e XIX vigoraram as chamadas ‘workhouses’, ou casas de trabalho forçado. Essas casas tiveram um papel fundamental em conformar a massa apta a trabalhar em aceitar fazê-lo por um salário.

Até esse período o trabalhador estava habituado a lavrar a própria terra ou aquelas pertencentes a sua comunidade, utilizando também coletivamente os instrumentos necessários para sua atividade. O processo violento de cercamento dessas terras e apropriação privada desses instrumentos jogou, de repente, o trabalhador em uma nova relação com a produção. Obviamente, não foi fácil e nem rápida a adaptação dentro da organização social que se inaugurava.

As cidades inglesas viram-se cheias dessa massa de gente que agora necessitava sobreviver de outra forma. Essa forma era a troca da capacidade de trabalhar por uma quantidade de dinheiro. Coisa estranha e nada usual para essas pessoas que vinham de suas comunidades agrárias. Para gerar essa adaptação a lei previa as citadas casas de trabalho forçado, açoites e mesmo marcação a ferro e fogo[1]. A classe trabalhadora foi assim domada para o trabalho assalariado da mesma forma como se domava um cavalo.

A existência do trabalho assalariado não era, no entanto, condição suficiente para a valorização do capital dentro da produção capitalista. Um segundo elemento deveria ser estabelecido, esse era a extensão da jornada de trabalho. Em um sistema em que a produção é voltada para o lucro, o trabalhador não pode trabalhar apenas o tempo necessário para criar as condições de sua reprodução. Deve, conjuntamente, trabalhar um tempo excedente, o qual não é apropriado por ele. Salário e tempo de trabalho estão, assim, intimamente relacionados ao tamanho do lucro.

Uma primeira contradição se estabelece nessa relação, na qual o patrão busca extrair o máximo de trabalho dentro de uma jornada e o trabalhador recebe na forma de salário apenas uma parcela de sua força de trabalho despendida. Se trava nesse conflito uma disputa que marca boa parte da luta entre capitalistas e trabalhadores: a definição do tempo de trabalho.

Um dos momentos de ebulição dessas disputas deu origem ao 1º de maio, o dia do trabalhador. Na segunda metade do séc. XIX, cresciam nos Estados Unidos e Europa movimentos de trabalhadores unidos reivindicando a redução da jornada de trabalho de até 16 horas para 8 horas diárias. “8 horas de trabalho, 8 horas de recreação, 8 horas de descanso” era o slogan que movimentava a luta.

Manifestações marcadas para o 1º de maio de 1886 em inúmeras partes dos Estados Unidos tiveram uma adesão maciça de trabalhadores e apoiadores. Em 4 de maio novo protesto foi marcado após ataque violento da polícia no dia anterior, o qual levou a morte de seis trabalhadores e deixou inúmeros feridos. No mesmo 4 de maio, em Haymarket Chicago, novo conflito ocasionou a morte de 7 policiais e 4 civis. A resposta violenta veio por fim com o aprisionamento e enforcamento dos líderes do movimento.

Apesar dos protestos terem trazido certas vitórias em alguns locais, a luta pela redução da jornada de trabalho seguiu pelo mundo nas décadas seguintes. Nos EUA a regulamentação das 8 horas só foi aprovada nacionalmente em 1916, na França em 1919 e no Brasil em 1937, limitada aos trabalhadores urbanos. Trinta anos separaram, portanto, o massacre de Chicago da conquista efetiva da redução do tempo de trabalho. A violência tem essa capacidade de controle, e por isso nunca foi abandonada.

Marx, no entanto, já havia dado o sinal quando mostrou que a extensão da jornada de trabalho não tem apenas um caráter absoluto. Importam também a intensidade e a produtividade do trabalho na exploração do trabalhador. Para determinar ambas um novo elemento se soma à separação entre trabalhadores e meios de produção.

Esse novo elemento é a retirada do controle do trabalhador sobre o ritmo do trabalho, a forma de execução das tarefas e a escolha do tipo de atividade realizada. A mecanização da produção e a separação entre o trabalho intelectual e trabalho manual, além dos vários mecanismos de organização e controle praticados nas empresas modernas tornaram o trabalhador um objeto na produção, uma simples extensão da máquina.

O trabalho assalariado na empresa moderna desumaniza, assim, o trabalhador, limita o desenvolvimento de suas capacidades plenas. Por isso o tempo de trabalho gera no capitalismo o seu oposto, o tempo livre, ou tempo de liberdade. E por isso a luta revolucionária da classe trabalhadora é uma luta pela humanidade.

Essas questões um tanto abstratas tomam, no entanto, formas concretas e agora chegamos ao ponto da reforma trabalhista no Brasil. Dois aspectos dela se relacionam diretamente com a luta pela apropriação do tempo de trabalho: a liberação da jornada intermitente e a terceirização das atividades da empresa.

A primeira diz respeito a possibilidade de contratação sem o estabelecimento prévio por parte do empregador da quantidade de horas a serem trabalhadas. Nesse caso o trabalhador fica à disposição para quando o contratante o chamar, podendo firmar acordos com diversas empresas. No caso da terceirização, permite que todas as atividades de um negócio sejam subcontratadas, passando a responsabilidade de controle e entrega para uma terceira firma.

O contrato de trabalho intermitente tem um duplo benefício para as empresas. Por um lado, garante a ela a utilização e o pagamento do trabalhador apenas pelas horas efetivamente trabalhadas. Diminui, assim, a porosidade do tempo em que o funcionário se encontra em serviço. Ao mesmo tempo, permite uma adequação rápida às flutuações na economia, sem incorrer em custos de demissão ou de tempo para novas contratações.

Não à toa, Paulo Solmucci, presidente da Abrasel (associação brasileira de bares e restaurantes) declarou que: “As grandes empresas vão adotar e dar o exemplo para as pequenas. Até junho, vamos surpreender o Brasil com o número de contratações intermitentes”[2]. O respectivo senhor olha para essa lei como um glutão diante de um banquete.

Para o trabalhador sobra a precarização e a insegurança, o tempo perdido e os custos de longos deslocamentos entre um trabalho e outro, os baixos salários. Também desestabiliza ainda mais a capacidade de organização e a solidariedade de classe. A violência também tem a forma de lei.

A terceirização, por sua vez, tem impactos ainda mais abrangentes, pois ultrapassa mesmo as barreiras nacionais. Inúmeros estudos apontam que a subcontratação de certos ramos da cadeia produtiva, em especial para empresas em países de baixos salários, causa reduções sobre os rendimentos dos trabalhadores internos, e não apenas dos menos qualificados. Permite, também, que o contratante se afaste da responsabilidade direta sobre o contratado. Isso tem gerado abusos, como os vários casos de trabalho análogo à escravidão em subcontratadas de grandes marcas de roupas brasileiras.

A empresa que contrata o serviço terceirizado consegue com ele uma garantia. Desaparece para ela a necessidade de assegurar que o tempo de trabalho contratado se traduza em tempo de trabalho efetivamente realizado. O que ela adquire agora é o produto final, ou seja, as horas de trabalho já materializadas na mercadoria. Dado que em muitos casos a empresa contratante se relaciona com inúmeras subsidiárias menores, impõe a elas uma concorrência que se traduz em jornadas extensas e intensas de trabalho.

Também aqui o trabalhador sofre um ataque direto sobre sua capacidade de organização. Na terceirização de serviços, por exemplo, é comum as empresas contratadas transferirem para outras contratantes aqueles trabalhadores que ensaiam alguma reivindicação conjunta. Nos serviços terceirizados de limpeza, por exemplo, dado que a prestadora firma contratos com inúmeras outras empresas, tem a capacidade de remanejar periodicamente seus trabalhadores. Essa prática limita a união e as ações conjuntas.

A reforma trabalhista veio num período de profunda crise no Brasil. A escalada do desemprego e a ameaça constante de demissão tendem a ser por si só um elemento disciplinador. Como já discutido na coluna anterior, os grandes capitalistas têm conseguido minimizar os custos da crise, repassando-os à classe trabalhadora. Esse é, também um momento de acirramento da luta de classe. Como observado, esses períodos convivem com a escalada da violência, seja direta seja institucional. Apesar de tudo, o trabalhador brasileiro resiste. A média anual de greves, por exemplo, quase triplicou desde 2013. A organização e a luta seguem sendo as únicas saídas disponíveis.

[1] No capítulo 25 do Livro I de O Capital, Marx descreve todo esse processo de formação do trabalhador assalariado e as leis da época com esse objetivo.

[2] https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2018/04/entidades-celebram-queda-de-medida-provisoria-e-querem-mais-intermitentes.shtml

 

Lucas Rodrigues faz parte do Movimento Economia Pró-Gente.

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