A luta dos peruanos para salvar El Paraíso

Foto:Jessica Mota (Agência Pública)

Por Jessica Mota.*

Eram quatro horas da tarde de um sábado, 29 de junho, quando Estequilla Rosales, uma peruana de 51 anos, ouviu um ruído vindo do outro lado do sítio arqueológico que tão bem conhece. Vice-presidenta da associação KapaqSumaqAyllu há 14 anos, ela tem a missão de ajudar a proteger um patrimônio cultural nacional do Peru, o Complexo Arqueológico de El Paraíso, de 45 hectares, um dos maiores e mais antigos do Peru. Ali passa seus dias. E bem próximo, no morro de Santa Josefina, fez sua casa.

O ruído significava algo que Estequilla não poderia imaginar nem em pesadelo. Um grupo de homens, utilizando retroescavadeiras e uma empilhadeira, destruía um dos onze montículos arqueológicos registrados no sítio. Embaixo desse montículo, uma pirâmide pré-incaica de cerca de 4 a 6 metros de altura e 2,5 km2, que data do período da antiguidade.

“Eu fiquei desesperada, não sabia o que fazer, porque aqui não há sinal de telefone. O que fiz foi subir ao morro e dizer ao vigilante que chamasse a polícia”, conta Estequilla. “Agora estou mais calma. Mas quando aconteceu realmente senti uma dor imensa, como se fosse uma pessoa, um ser muito querido para mim. Porque é parte de meu país, estavam assassinando minha identidade, minha cultura. E isso é, como se pode dizer, uma traição à pátria. Eu sinto que um peruano seja tão ignorante para destruir assim”.

Foto:Jessica Mota (Agência Pública)

O Complexo Arqueológico de El Paraíso, distante uma hora de Lima, no município San Martin de Porres, está em área de expansão da especulação imobiliária. Descoberto na década de 1950, o sítio arqueológico permaneceu no abandono até dezembro de 2012, quando se iniciou o projeto implantado pelo Ministério da Cultura. Com o passar dos anos, os arredores do sítio arqueológico foram sendo tomados. Hoje, os limites do sítio terminam onde começam as plantações e terrenos privados.

Ali havia 12 pirâmides registradas. A principal foi quase totalmente restaurada por Fredéric Engel, arqueólogo suíço, entre 1965 a 1966. Em janeiro desse ano, o setor de escavações do Ministério da Cultura peruano descobriu uma evidência de que El Paraíso é tão antigo como as pirâmides do Egito ou a civilização Mesopotâmica. Ali seria um dos berços da civilização no nosso continente latino-americano, com entre 4.500 e 4.800 anos de antiguidade. A prova de que muito antes dos espanhóis, da Igreja e até de Cristo, Lima já era uma grande capital.

“É uma das poucas cidades no mundo que tem uma continuidade cultural ao longo do tempo. E isso é uma grande vantagem”, explica Marco Guillén, arqueólogo diretor do projeto desenvolvido pelo Ministério da Cultura em El Paraíso. “Lima, a capital, tem a waka (monumento antigo e sagrado) mais antiga do Peru. É como a civilização surge aqui. A destruição da pirâmide significa arrancar a folha de um livro da história do Peru. Não se pode saber o que aconteceu”.

No meio do caminho, tinha uma pirâmide

Saindo de Lima, para se chegar a El Paraíso, é preciso tomar um micro – espécie de van que domina o transporte público em Lima – até o município vizinho de Pro. É uma viagem de 40 minutos pelo caótico trânsito da capital peruana. Dali, mais dois micros até o carro, próximo ao terminal, dirigido por um membro da Associação KapaqSumaqAyllu. A paisagem é árida, pontuada por residências simples. Ao entrar na estradinha que leva ao Complexo, lixo a céu aberto, urubus e crianças que procuram brinquedos em meio a sujeira.

Reparo em um muro que nos acompanha durante todo o trajeto. “É uma muralha”, explica Miguel Castillo, chefe de campo do projeto de El Paraíso, que está sentado no banco de trás do carro. Mais tarde, eu saberia que aquela muralha tem 30 quilômetros de extensão e dá a volta nos morros da região. Com o tempo, foi dividida por construções e terrenos privados.

“O Estado é ineficiente. Tem recursos para delimitar e proteger as wakas, mas não o fazem. É igual no Brasil, na Argentina… O que se tem é a iniciativa pessoal de algumas pessoas, de arqueólogos. Mas não é suficiente”, avalia o chefe de campo do projeto arqueológico de El Paraíso.

Foto:Jessica Mota (Agência Pública)

Os membros da Associação Kapaq, junto com vigilantes, haviam sofrido um atentado uma semana antes. Por segurança, um vigilante acompanhou nosso grupo – com toda a equipe de arqueólogos – durante a caminhada até a área onde a pirâmide havia sido destruída.

Os trabalhadores da região que ajudam nas escavações agora ficam sentados no alto dos morros, vigiando. Depois da derrubada da pirâmide, a segurança foi redobrada. Hoje são quatro policiais que fazem a proteção diurna e à noite, e dois vigilantes de uma empresa privada contratada pelo Ministério da Cultura, que se desdobram para cobrir os 45 hectares do sítio.

Um país de sítios arqueológicos

No Peru, qualquer equipe de construção civil é obrigada a ter um arqueólogo entre seus membros. No país inteiro, são cerca de 13 mil sítios arqueológicos descobertos. Só na região central de Lima, a capital peruana, são 366. “E isso seria só 10% ou 15% do que há”, diz Miguel Diaz, assessor de imprensa do Ministério da Cultura – criado em dezembro de 2011 (antes, os trâmites eram realizados pelo Instituto Nacional de Cultura). Ele também diz por que a pirâmide de El Paraíso teria sido destruída: “Desde os anos 1930, as invasões de terras que, supostamente, deveriam ser de propriedade do Estado, são comuns no Peru. E também há traficantes de terra, que forjam documentos e vendem as terras como se fossem suas”.

Até Machupicchu, patrimônio cultural da humanidade, passou por litígio, com a reivindicação da família Zavaleta dos lucros civis de terrenos que estariam dentro do Parque Arqueológico Nacional de Machupicchu. E em 2009, numa região urbana ao lado de Lima, em Callao, os Montículos de Oquendo, semelhantes aos que se veem hoje em El Paraíso, também foram destruídos .

O arqueólogo Marco Guillén explica que as empresas destroem os montículos para sumir com as provas de que se trata de uma zona arqueológica. “Antes de serem escavados, os sítios arqueológicos ficam cheios de montículos. E as empresas imobiliárias e outros interessados se aproveitam para dizer que são apenas pedras. O objetivo final deles é urbanizar todo o sítio arqueológico”, denuncia.

Foto:Jessica Mota (Agência Pública)

Em El Paraíso, a briga é com a Imobiliária Alisol S.A.C e a Companhia e Promotora Provelanz E.I.R.L, ambas representadas legalmente por Alicia Romaní Vargas, contra quem o Ministério da Cultura fez uma denúncia penal pelos danos causados em El Paraíso à Fiscalía Provincial Penal de Lima Norte.

“As zonas arqueológicas, por lei, são próprias do Estado peruano. Mas, apesar disso, de maneira ilegal ou pouco transparente, existem construtoras, existem imobiliárias que compram terrenos arqueológicos. Com que fim uma imobiliária compraria uma zona arqueológica se não o de tratar de urbanizar a área?”, critica Marco.

Depois da denúncia, segundo conta Esquetilla Rosales, o casebre onde a equipe da Associação KapaqSumaqAyllu, os vigilantes e os arqueólogos guardam seu material chegou a ser atacado no dia 2 de agosto. “Um grupo de vândalos entrou e queimou todas as nossas coisas, com a finalidade de nos assustar, para nos fazer ir embora”, afirma Esquetilla.

Os arqueólogos e os membros da Associação contam que as ameaças acontecem constantemente desde o início do projeto arqueológico. Além do incêndio, Estequilla foi pessoalmente ameaçada. “Estava voltando para casa, e supostamente nos assaltaram, um carro, uma caminhonete verde. Eu estava sentada na parte da frente e colocaram uma arma, não vi de que tipo, nem nada, colocaram aqui [aponta com os dedos da mão para a têmpora direita]. Falaram com dureza, perguntando o que eu queria ali. Me diziam: ‘Trouxeste o Ministério aqui!’. Eles dizem que é por minha culpa que o Ministério está aqui agora realizando esse projeto”, relata ela, que mesmo assim não quer sair dali.

Foto:Jessica Mota (Agência Pública)

“Como todo ser humano, sempre há um temor. Mas eu sinto que se temer, vou ficar sem fazer nada. De nada valeria a vida que a pessoa tem aqui na terra se não faz nada por seu país. É isso também que me fortalece e me anima para seguir adiante”, ela diz.

Fora de campo

Marco Guillén não é homem de usar terno. Prefere estar em campo, atuando como o arqueólogo que sonhava ser quando, menino, encantava-se com livros de história. Seu rosto se ilumina ainda ao explicar a cultura e a história arqueológica de El Paraíso e a voz trae a ansiedade da descoberta:

“Estamos descobrindo muitas das crenças que se pensavam que eram dos Incas ou dos Waris”, explica. Na verdade, elas são de civilizações mais antigas, diz. “Aqui está bem claro a divisão, temos mais figuras, mais preservadas – pelo menos por agora”.

No trabalho de quebra cabeça, como se refere à arqueologia, El Paraíso vai se revelando. “Toda semana, nós arqueólogos sentamos para discutir o que deve ser escavado, o que se está encontrando, e comparar com outros sítios arqueológicos do Peru. Assim podemos ver a relação que existe entre os sítios arqueológicos e ir formando uma ideia da sociedade da época”, explica Guillén.

O interesse por El Paraíso vem dos tempos de estudante, quando foi fazer seu trabalho de conclusão de curso. “Grandes investigadores no mundo queriam explicar a origem da civilização nesse sítio, e contavam de maneira tão apaixonada, que isso ficou gravado. Em 1999, como estudante, decidi que ia um dia escavar El Paraíso”, conta Guillén, hoje com 33 anos.

Foto:Jessica Mota (Agência Pública)

Junto a um grupo de arqueólogos e a Associação KapaqSumaqAyllu, Guillén iniciou o trabalho de revitalização de El Paraíso. Em 2006, quando foi nomeado para um cargo junto ao Ministério da Cultura, defendeu o desenvolvimento do projeto arqueológico de El Paraíso, mas, sem verbas por três anos, só no final de 2012 as coisas começaram andar.

O que une Guillén – e Estequilla – a El Paraíso é a paixão. “Não é justo que um sítio tão importante se perca”, diz o arqueólogo. “Já me disseram ‘mas, Marco, por que te meteste nesse sítio se já sabia que ia dar problema com a imobiliária, por que não foste trabalhar em outro sítio?’. Não, respondo, eu renuncio à minha casa, a trabalhar tranquilo ganhando mais no escritório, para ficar no sítio arqueológico porque alguém precisa fazer isso. Apesar das ameaças de morte contra a minha gente também [os arqueólogos que trabalham com ele], acreditamos que é importante que o Peru valorize esse sítio. Não se pode deixar ao Deus dará, como querem algumas pessoas”.

Com tudo isso, acredita ele que a situação vai solucionar-se? “Se você tivesse me perguntado há um mês atrás, eu diria que sim, que vai se solucionar. Mas perguntando agora, quando já fizeram tantas coisas… Não sei”, fala com o semblante desesperançado. “Não sei se vai se solucionar”.

* Da Agência Pública. Reportagem especial www.apublica.org

Fonte: http://site.adital.com.br/site/noticia.php?lang=PT&cod=77161

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