A luta de classes e o seu mundo

Por Carmen Susana Fava Tornquist, de Paris, para Desacato.info.

É junho.

Há oitenta anos, na França, o governo da Frente Popular regulamentou vários direitos trabalhistas, dignos de registro e exemplo para o mundo. Feriados pagos, negociação por categoria profissional, reconhecimento da atividade sindical, jornada de 40 horas semanais, ganhos salariais, entre eles. A história oficial atribuiu a Leon Blum este grande feito, mas ele resultou de meses de luta no país– também em maio e em junho – com manifestações,  ocupações e greves em fábricas e magazines.

O governo e o Partido Socialista, fiel a esta  tradição, têm feito várias homenagens públicas, promovendo vernissages, exposições e conferências,  nos diversos níveis onde se encontra no poder. Pequenos vilarejos da França podem apreciar os feitos deste socialistas que teriam garantido conquistas históricas para a  sociedade francesa. Mas a vida  real é um pouco mais complexa:  o mesmo governo que promove esta memória coletiva socializante, tenta impor,  a qualquer custo,  a Lei El Khomri , alterando  frontalmente o Código de Trabalho.O nome da lei é controverso, já que sua autoria  parece ter vindo, mesmo, de Pierre Gattaz, presidente do MEDEF(Movimento das Empresas da França) e assumida pelo governo, daí ser chamada  de Loi Travail.[1]

Já os movimentos sociais, por força do destino e da dialética – comemoram a data nas ruas, em combate e na luta contra os ataques aos seus direitos.

A Lei El Khomri é o último golpe contra o Código de Trabalho, pois de fato muitos direitos trabalhistas na França já foram corroídos, nas ultimas décadas. Poucos são, hoje, os trabalhadores e as trabalhadoras que usufruem das conquistas de 1936. A reestruturação produtiva, desde os anos de 1990, jogou, literalmente, para fora do mercado de trabalho formal vários segmentos de trabalhadores – e há uma literatura (e uma cinematografia) bem conhecida, no Brasil, a este respeito São anteriores ao governo de Hollande, e articula-se com a entrada em cena das tecnologias digitais, de forma massiva e imperativa. O mundo do “digital” é uma das chaves de acesso aos chamados novos tipo de emprego, embalados pela ideologia do empreendedorismo e do uberismo, como tem sido chamado aqui o novo modelito de auto-exploração dos trabalhadores. Uma rápida passeada pelas páginas da MEDEF permite ver, com clareza, a centralidade que a revolução digital ocupa na agenda da burguesia francesa. Nada muito diferente do Brasil, a não ser, talvez, a forte presença de migrantes africanos, árabes e asiáticos que compõe a classe-que-vive-do-trabalho, aqui. No campo dos empregos com maior formalidade, a instabilidade cotidiana e a ultra competitividade são, também, comuns.

 O campo sindical, em vários momentos, parece ter aberto mão de fazer o bom combate, aliado as dificuldades normais neste contexto em promover a solidariedade e a consciência de classe. As taxas de sindicalização caíram nas ultimas décadas: as cinco centrais sindicais dignas deste nome (CGT, FO, FSU, Solidaires, Unef, Fidl e UNL), hoje  juntas na Intersindical, no enfrentamento contra  a Loi  Travail, não cresceram na mesma proporção da precarização e por isto mesmo, os movimentos recentes adquirem um significado  extremamente importante.

Por outro lado, se o sonho de uma greve geral ainda está distante, crescem as paralisações por tempo determinado e as greves por setor.  Trabalhadores das refinarias de petróleo, centrais nucleares, motoristas da rede ferroviária e aeroviária, entre outros, tem feito greves por tempo determinado, impondo com sua força – a força do coletivo – o verdadeiro debate sobre a Lei. Isto em um momento em que o governo aposta todas suas fichas nos Jogos de Futebol e em outros “fatos-ônibus”, como diria Bourdieu[2].  Desde março, quando iniciaram as lutas, e de fora do campo sindical,[3] o movimento não parou de crescer. Uma pesquisa feita dias atrás pelo instituto Opinion Way[4], indicou que 64% dos franceses acreditam que em razões da mobilização o governo deve retirar a Lei do trabalho. Outras fontes falam em 70 % de apoio a luta pela retirada da Lei, ao mesmo tempo, a intersindical faz um plebiscito acerca do tema,  em varias cidades do país. O real vai se impondo ao longo do intenso calendário de mobilizações e paralisações em locais de trabalho. A tradição de unir combate de classe com confraternização e alegria entre camaradas, marcante nos eventos de 1936, pode ser observada nas manifestações de rua e nos espaços de trabalho, enchendo de sentido a famosa consigna Tous ensemble (todos juntos).

 Mas a última novidade do governo socialista- esta, realmente, surpreendente – é a recente ameaça de impedir a realização de novas manifestações. Apoiado no repúdio a  quebra-quebras ocorridos no final da Marcha de 14 de junho, junto ao Hospital Infantil Necker, o governo  parece ter  jogado sua ultima cartada na sua  política de associar os sindicalistas a vândalos irresponsáveis. A virada autoritária do PS contra o movimento já havia sido dada, em maio, com a invocação do artigo 49.3 da Constituição, que permite ao governo dar a palavra final sobre temas polêmicos, passando por cima do parlamento.  No dia 13 de junho, já no clima do Euro de futebol, Hollande ameaçou novamente em interditar o direito as manifestações.  E, no domingo após a grande manif do dia 14, Manuel Valls foi à mídia “pedir” que os militantes suspendessem eles mesmos as manifestações previstas para 23 e 28 de junho. Até a CFTD, confederação sindical governista, que  apóia a Lei Khomri, considerou a medida despropositada, alem de sua falta de apoio legal.[5] E a Intersindical confirmou a convocação da próxima marcha, no dia 23 próximo. Agora, mais uma consigna identifica e une os militantes: Eu não respeitarei a interdição de me manifestar.

 Alguns flashes desta  virada já vinham acompanhando o movimento desde abril: repressão com gás lacrimogêneo, criminalização individual de manifestantes,e, mais recentemente, mudanças de trajeto,  O sumiço de panfletos e cartazes colcoados pelas ruas e pontos de ônibus,  contra a Loi Travail e convocando a população para reuniões e assembléias tem se tornado rotineiro, fazendo coro com a deliberada ação da mídia burguesa e das autoridades públicas em ignorar e, mais recentemente, demonizar os militantes, transformando-os em terroristas.

O bizarro da situação é que o mesmo governo que saiu às ruas acompanhado de multidões, em janeiro de 2015, para repudiar, muito justamente, o atentado ao Charlie Hebdo, apelando para ícones republicanos, como a liberdade de expressão e a herança de Voltaire,  agora  reivindica o que há de pior na democracia burguesa  para enfrentar   a luta de classes nua e crua. Tem ficado bem difícil não lembrar, a cada dia, dos viejos camaradas Marx e Engels: o Estado é um comitê de negócios da burguesia…

Mas se fica claro que o âmago das lutas é o enfrentamento  com a Loi Travail, , o movimento carrega junto pautas e práticas contemporâneas: anti-racismo,ecologismo,feminismo,diversidade sexual,veganismo, direitos dos animais e da natureza. A referência aos revolucionários de ontem se articula com os reclames do aqui e do agora. Nenhuma chance de repetir o passado como decalque ou cópia, como dizia, Jose Carlos Mariátegui, em sentido aproximdo.Os novos desafios do século XXI estão juntos com a velha senhora- a luta de classes do  XIX. Neste sentido, a expressão “a lei do trabalho e seu mundo”, corrente no movimento, deixa claro que está em jogo muito junto com   a lei do trabalho, o repúdio à mercantilização da totalidade da vida e  à ordem do capital.

Provavelmente por isto, no último dia 14, outra  consigna entrou em cena, ao lado da Greve  Geral : “Rêve” Geral. [6]

Bem-vindas as jornadas de junho!

Susi 2 a

[1] Lei do trabalho, na tradução. Lei Khomri, Lei Gattaz- Hollande, ou Lei Gattaz-Valls, referem-se a mesma  Lei.

[2] Bourdieu, P. Sobre a Televisão, RJ. Zahar, 1998.

[3] Há controvérsias sobre a origem do Movimento contra lei. Khomri. Régine Vinon, por exemplo, atribui a iniciativa à juventude, organizada no Nuit Debout, tendo a CGT (maior central) aderido depois, bem como outras centrais. ( Vinon, Regine:  Derrière l’attaque contre La CGT, le mépris de classe, in L ánti-capitaliste/ NPA,n  77, juin 2016.

[4] Publicado em L’humanité de 19 de junho.

[5] A lei que envolve as manifestações data de 1935, e implica que os organizadores comuniquem a prefeitura da realização do evento, o horário e o trajeto. (Danielle Tartakowski, entrevista  para Les In Rocks, em 17.06.16)

[6] Grève general/Rêve Général (literalmente)

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