A leitura correta do pacto grego

Diante das enviesadas (ou incompetentes) interpretações dos meios de comunicação dominantes: a leitura correta do pacto grego. Para entender as questões em jogo na Grécia, é preciso indagar o conteúdo do infame “Memorando do Entendimento” assinado pelos governos gregos anteriores.

Por  James K. Galbraith.*

James K. Galbraith

Quando saiu a notícia do pacto em Bruxelas, na sexta-feira, a Alemanha se apresentou como a ganhadora e é pouco surpreendente que a maioria da imprensa tenha comprado esse discurso. Contavam com grandes autoridades a quem citar e em quem se basear. De Londres, o The Independent declarou:

“Vários analistas concordam que o resultado das negociações significa uma derrota humilhante para a Grécia”.

Não havia detalhes e não se mencionaram os nomes nem as afiliações dos analistas – embora mais adiante tenham citado dois e ambos trabalhavam para bancos. Pode-se falar em exemplos semelhantes provenientes dos lados do Atlântico.

Com a New Yorker, a história é outra. Trata-se de uma revista independente com muita reputação e que escreve para um público também independente. John Cassidy é um de seus analistas. Os leitores querem levá-lo a sério, e seus erros são, por isso mesmo, importantes. A análise de Cassidy apareceu em um artigo intitulado “Como venceram a partida contra a Grécia”, e o parágrafo introdutório continha esta frase:

“O novo governo de esquerda do Syriza na Grécia contou para todo mundo durante semanas que não aceitaria um prolongamento do resgate e que queria um novo acordo de crédito que deixasse suas mãos livres; isso dito, o pacto coloca uma rendição para o Syriza e uma vitória para a Alemanha e para o resto dos dirigentes europeus”

De fato, nunca existiu a possibilidade de um acordo de crédito que pudesse liberar suas mãos por completo. Os acordos de crédito vêm com condições. As únicas opções eram: ou um acordo com condições ou sem acordo nem condições.

A decisão tinha que estar tomada até 28 de fevereiro porque, depois dessa data, acabaria a ajuda do BCE aos bancos gregos. Se não tivesse havido acordo, teria sido necessário estabelecer controles de capital com o objetivo de evitar as quebras bancárias, promover o não pagamento da dívida e uma saída prematura do euro. O Syriza não foi eleito para tirar a Grécia da Europa. Portanto, para poder cumprir suas promessas eleitorais, a relação entre Atenas e Europa teria que se “prolongar” de forma que ficasse aceitável para ambos.

Mas prolongar o quê, exatamente? Havia duas expressões em jogo e nenhuma delas era a tão imprecisa “prolongar o resgate”. A expressão “prolongar o programa atual” aparecia nos documentos da troika e implicava aceitar os termos e as condições atuais. Para os gregos, isso era inaceitável. Em contrapartida, a expressão “prolongar o acordo de crédito”, tecnicamente mais correta, seria menos problemática.

No documento final, prolonga-se o “Acordo para o Mecanismo de Assistência Financeira” (MFFA, em sua sigla em inglês). O MFFA “se baseia em um conjunto de compromissos”, mas estes são – tecnicamente – diferenciados. Em poucas palavras, prolonga-se o MFFA, mas seus compromissos devem ser revisados.

Também aparecia a bonita palavra “acordo” – que a equipe grega identificou em uma primeira versão do comunicado feito pelo presidente do grupo do euro, Jeroen Djisselbloem, na segunda à tarde, e no qual o usa deliberadamente. Nesse sentido, o documento de sexta é uma obra-prima:

“O objetivo da prorrogação é superar com êxito a avaliação com base nas condições estipuladas no acordo atual, aproveitando ao máximo a flexibilidade outorgada a ser medida conjuntamente entre as autoridades gregas e as instituições. Essa extensão também reduzirá o tempo das discussões sobre um possível acordo de prolongamento entre o grupo do euro, as instituições e a Grécia. As autoridades gregas apresentarão uma primeira lista das medidas de reforma, baseada no acordo atual, antes de 23 de fevereiro. Por sua vez, as instituições expressarão sua opinião se esta é suficientemente boa como ponto de partida adequado para superar a avaliação de forma satisfatória”.

Se alguém acredita que pode encontrar um compromisso inequívoco dos termos e das condições exatos no “programa atual”, eu desejo boa sorte. Não estão ali. Portanto, não, a troika não pode ir a Atenas e se queixar da recontratação das trabalhadoras do serviço de limpeza.

Para compreender as questões que, em essência, estão em jogo entre Grécia e Europa, é preciso indagar um pouco mais o conteúdo do infame “Memorando do Entendimento” assinado pelos governos gregos anteriores. Um primeiro elemento: nem tudo o que existe nesse documento é irracional. Em grande parte, reflete leis e regulações da UE. As cláusulas em relação à administração fiscal, à evasão fiscal, à corrupção e à modernização da administração pública são, em geral, boas práticas com as quais o Syriza está de acordo. Portanto, para o novo governo grego, não é um problema cumprir os “setenta por cento” do memorando.

Os “trinta por cento” restantes pertencem principalmente a três áreas: os objetivos fiscais, as privatizações e as mudanças na legislação trabalhista. O objetivo fiscal de alcançar um “superávit primário” de 4,5% era indesejável, como todos admitiriam em privado. O novo governo não se opõe às privatizações per se; opõe-se àquelas que estabelecem monopólios privados com capacidade de manipulação dos preços e se opõe às vendas rápidas a preço de saldão, e que quase não aportam dinheiro. A reforma trabalhista representa um desacordo mais fundamental – mas a posição do governo está na mesma linha dos padrões da OIT, diferentemente do que postula o “programa”. Esses assuntos serão discutidos a partir de agora. O objetivo fiscal já é história e os gregos aceitaram não adotar medidas “unilaterais” unicamente durante os próximos quatro meses, nos quais estará fazendo acordos.

Cassidy reconhece parte disso, mas o minimiza com o comentário de que o pacto “parece descartar qualquer possibilidade de aplicar estímulos keynesianos em grande escala”. Em qual documento essa promessa está escrita? Não existe dinheiro na Grécia; o governo está quebrado. As políticas keynesianas em grande escala nunca estiveram em discussão, dado que necessariamente teriam implicado a saída (do euro) – uma política expansiva em uma nova moeda, com todos os perigos habituais. Dentro do euro, os fundos para investimento só podem fazer uma melhor arrecadação impositiva de fontes externas, como os investidores privados, ou do Banco Europeu de Investimentos. O comentário de Cassidy parece ter caído do céu.

Outra fantasia alheia à realidade é a ideia de que a equipe do Syriza ficou “constrangida” por um êxito político “que apareceu do nada”. De fato, o Syriza sabia havia meses que, havendo eleições em dezembro,venceria. Eu estava lá na noite de domingo, 8 de fevereiro, quando o primeiro-ministro grego, Alexis Tsipras, abriu o parlamento com sua versão do Estado da União. Tsipras não estava eufórico. E as primeiras palavras que Yanis Varoufakis me disse quando cheguei ao ministério de finanças logo antes de ir escutá-lo foram: “bem-vindo ao cálice envenenado”.

Quanto às negociações diplomáticas, Cassidy conclui que Tsipras e Varoufakis “sobrevalorizaram sua ação”. Um observador da cena perceberia que o governo grego permaneceu unido; os esforços feitos para escantear Varoufakis foram em vão. Quando as conversas prosseguiram, os líderes da Comissão, Jean-Claude Juncker e Pierre Moscovici, atuaram sem reservas para resolver a questão e, na segunda-feira, ofereceram uma primeira versão construtiva. Outros governos suavizaram suas posturas. Ao final, surpreendentemente, foi o governo alemão que se dividiu – em público –, dado que o vice-chanceler Sigmar Gabriel se desmascarou aceitando a carta grega como uma boa base sobre a qual negociar pouco depois de o ministro das Finanças, Wolfgang Schäube, a ter rechaçado. Isso acabou provocando a chanceler Angela Merkel para chamar Alexis Tsipras e mudar o tom das negociações. Provavelmente, a manobra foi coordenada; ainda assim, foi Schäuble quem finalmente deu um passo atrás. Parece que nada disso chamou a atenção de Cassidy.

Por último, na véspera dessas conversas, os gregos não se deram conta de que não tinham poder de negociação, e deram – como escreveu Cassidy – todas as vantagens a Schäuble, uma vez que este “percebeu” que Varoufakis não podia sair do euro? Na realidade, os gregos nunca tiveram a menor intenção de sair, tal como Varoufakis escreveu no New York Times e como eu escrevi dois dias depois das eleições, no Social Europe:

“Que poder de negociação a Grécia tem? Obviamente, não muito; as armas fortes estão no outro lado. Mas tem uma coisa. O primeiro-ministro Tsipras e sua equipe podem apresentar seus motivos sem quaisquer ameaças. Então, o gesto moral adequado do outro lado seria… conceder espaço fiscal e garantir a estabilidade financeira enquanto as negociações evoluem. Se isso acontecer, então as negociações podem ser realizadas de forma correspondente”.

Isso é o que parece ter acontecido. E aconteceu pela razão que apontei: ao final, a chanceler Merkel preferiu não ser a líder responsável pela fragmentação da Europa.

Alexis Tsipras disse acertadamente. A Grécia ganhou uma batalha – talvez uma escaramuça – e a guerra continua. Mas também continua em marcha a mudança política radical que a vitória do Syriza desatou. Sob um ponto de vista psicológico, a Grécia já mudou; o ânimo e a dignidade que existe hoje em Atenas não existiam seis meses atrás. Rapidamente, serão abertas novas frentes na Espanha, depois talvez na Irlanda, e mais tarde em Portugal; em todos esses países, as eleições se aproximam. É pouco provável que o governo da Grécia desmorone, ou ceda, nas conversas que estão por vir, e com o tempo se apreciará claramente a margem de manobra que ganhou nessa primeira peleja. Em um ano, o panorama político da Europa poderá ser bastante diferente do que é hoje.
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* James K. Galbraith é professor da Lyndon B. Johnson School of Public Affairs da Universidade do Texas (Austin). Entre seus últimos livros, “Inequality and Instability: A Study of the World Economy Just Before the Great Crisis” (2012) e “The End of Normal: The Great Crisis and the Future of Growth” (2014). É coautor com Yanis Varoufakis e Stuart Holland da “Modesta Proposição para a saída da crise da zona do euro” (2013).

Fonte: Carta Maior

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