A ironia de Zai e as verdades necessárias em tempos de covid-19

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Por Elissandro Santana, para Desacato.info.

Esta semana, aqui em Porto Seguro, um vídeo de Zaine, uma menina muito inteligente da região, em tom irônico e inteligente, de combate à ignorância que se manifesta no comportamento de parte dos munícipes diante da pandemia, atraiu-me pela criticidade e pelas verdades necessário-cortantes que trazia, mas assim como prendeu minha atenção, também desencadeou o assombro de alguns hipócritas irresponsáveis, e, neste sentido, até certo ponto, acredito que a bloguera de funerária atingiu seus objetivos, que era o de provocar quem provoca a morte e faz roleta russa cotidianamente no movimento das ruas.

A reação de alguns, e falo a partir de algumas mensagens que recebi de desaprovação da semântica irônica de Zai, é de uma hipocrisia e descabimento que beira o limite do ridículo, de tão surreal, já que o comportamento de muitos na cidade é, de fato, de morte, e é exatamente sobre este espanto dos que se incomodaram ou ainda podem se incomodar com a semântica crítica sobre a morte que quero dialogar hoje com vocês, caros/as leitores/as do Portal Desacato.

Antes de discorrer sobre o vídeo, preciso tecer algumas considerações, pois elas são deveras importantes para a discussão que busco fazer. É o seguinte: em meio à Pandemia pela Covid-19, mesmo diante das informações apresentadas por profissionais da saúde e de outras autoridades sobre a situação do país no tocante ao reduzido número de leitos / UTIs nos hospitais e ao perigo que o vírus representa para a população, em especial, para aquelas pessoas com mais idade ou de qualquer idade com alguma comorbidade patogênica, diagnóstica ou prognóstica, diante dos boletins epidemiológicos com números diários de contaminação em curva crescente, de quantidades diárias de óbitos e de narrativas de dor e de desespero de famílias que perderam seus entes devido à ausência de suporte para o atendimento com qualidade aos que partiram e aos que, todavia, lutam pela vida, ainda assim, milhões de brasileiros lotam ônibus, metrôs e, mais recentemente, shoppings do Rio de Janeiro, de São Paulo e de outras cidades Brasil afora transitando como se nada houvesse ou na ilusão de que são super-homens e supermulheres e que, por isso, não contrairão a doença, seja por influência de discursos de líderes religiosos, seja pelo mau-exemplo do capitão cloroquina e enxofre, ou por teimosia inata mesmo.

Nada parece assustar grande parte da população no que concerne à Covid-19, nem mesmo a semiótico-imagética da morte televisionada todos os dias, mas os mesmos que não estão nem aí para o isolamento social e, em função disso, diante das flexibilizações do comércio pelas prefeituras Brasil adentro, se aglomeram nos espaços de consumo, colocando em risco toda a nação, começando pelas comunidades e territórios em que vivem e produzem sentido, são aqueles que se incomodam com verdades como as que Zaine trouxe no vídeo desta semana no qual oferecia produtos funerários para as famílias vítimas da Covid-19.

A semiótica e a discursiva no vídeo de Zaine incomodam quem não se incomoda com a saúde do vizinho, do familiar que diz tanto amar, e que só visualiza um número a cada morte anunciada, e isso é bastante confuso, pois, estamos diante de uma bomba relógio que pode explodir matando ainda mais em todos os estados do país e, nem assim, acordam do torpor e do mergulho no caldeirão de ignorância e maldade no qual poucos entendem a gravidade da situação e a necessidade do isolamento e distanciamento neste momento. Estes que colocam as nossas vidas em perigo são os mesmos que se sentem ofendidos com verdades como as que são ditas pela inteligente Zaine, uma ex-aluna minha que arrasa no deboche e nas verdades mais que urgentes.

O vídeo de Zaine ao qual me refiro foi todo alicerçado em discursos que insanos precisam ouvir e é feito de forma simples, ofertando serviços funerários para aqueles que não se cuidam em meio à pandemia e não estão nem aí para o vírus. Há toda uma ironia em torno de uma linguagem que todos, de intelectuais a analfabetos, entendem em profundidade a mensagem. Em um primeiro momento, o vídeo choca, mas quando você se aprofunda na reflexão fazendo um comparativo com o comportamento social diante da pandemia pelo coronavírus, automaticamente, você, leitor e leitora inteligentes, se dão conta do quão inteligente é a forma como Zaine tenta educar pela ironia.

O vídeo, pelo que vi, diante dos comentários aos quais tive acesso, até o momento, revela o paradoxo entre alguém que não está nem aí para a saúde dos outros, mas que se sente incomodado com as verdades no discurso funerário de uma menina muito esperta que não faz mais do que se valer de uma análise do próprio comportamento insano da sociedade portossegurense e que também se aplica a todo o Brasil, já que Porto é uma amostra possível para entender outros comportamentos sociais doentios em outras partes do país. Também há outro polo de gente alienada que considera a pandemia um exagero, que na verdade, seria uma gripezinha e, por isso, veem podem ver no vídeo o exagero, de uma pessoa desequilibrada, desqualificando a inteligência, atitude muito recorrente entre os negacionistas do vídeo, seja por maldade ou por ignorância mesmo, e tudo isso só corrobora o quanto a alienação desses assombrados ou reprovadores da ironia de Zai vivem em uma bolha louca de inversão semântica.

Em face da bomba relógio da Covid-19 em todo o país, as reações de rechaça de algumas pessoas em relação ao vídeo de Zaine aqui em Porto Seguro revelam muito sobre a incapacidade que o povo possui de receber verdades cortantes e, diferente dos hipócritas irresponsáveis, vejo no vídeo de Zaine não um deboche pelo simples deboche como um culto à dor do outro, mas um chamamento à consciência, de que é preciso, nesse momento, se distanciar, evitar aglomerações, pois, até o ponto em que sabemos, este ainda é o melhor meio para evitar a propagação e crescimento exponencial da doença em nosso país que já ocupa, segundo os últimos dados, o segundo posto mundial de contaminação por coronavírus.

O espanto dos irresponsáveis em relação ao vídeo, para mim, é a prova cabal-concreta de que eles, e são muitos, estão em um estado de torpor-coma e tudo isso resulta de uma ignorância fruto de uma descolonialidade incompleta. No mais, cabe destacar que os irresponsáveis ou maldosos apoiadores do governo da morte que se assombram ou se assombrarão com um vídeo como o que apresentei aqui revelam a hipocrisia coletiva histérica a partir de um modus operandi alienado de rebanho, mas que, ao mesmo tempo, é individualista, em que milhões de brasileiros desacreditam das autoridades da saúde, mas se espelham nas palavras de um lunático no poder, prova de que estamos para além de uma sociedade esvaziada-decepcionada e de que vivemos o culto à desinformação e à ignorância, com espaços que são preenchidos por sentidos que não tocam a realidade absolutamente.

Diferente daqueles que se assombram com o vídeo de Zai, opino que a ironia dela vem em boa hora, exatamente no contexto em que, além daqueles que negam o vírus e dos que vão às ruas e se aglomeram sem necessidade, agora temos os zumbis que atendem ao chamado do Presidente Dadá para que invadam os hospitais na tentativa de causarem confusão em relação ao real quadro sanitário no qual nos encontramos e do qual não sairemos tão cedo.

Sinceramente, espero que outras experiências de ironia como as de Zaine, a partir de outros formatos, evidentemente, dependendo das realidades, se reproduzam por outras partes do país, pois precisamos entender, de uma vez por todas, e espero que não seja tarde, que não somente temos uma necropolítica, mas, também, uma necrossociedade que está produzindo um chorume moral que pode representar o nosso fim como humanidade e sociedade.

Elissandro Santana é professor, membro do Grupo de Estudos da Teoria da Dependência – GETD, coordenado pela Professora Doutora Luisa Maria Nunes de Moura e Silva, revisor da Revista Latinoamérica, membro do Conselho Editorial da Revista Letrando, colunista da área socioambiental, latino-americanicista e tradutor do Portal Desacato.

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