A homossexualidade não é africana. A heterossexualidade também não (Parte 1)

Por Gilza Marques.

(O objetivo deste texto é propor uma tentativa de discussão sobre o que o ocidente denominou de “orientação sexual” numa perspectiva afrocentrada. O conceito de “identidade de gênero” será discutido num texto futuro, se me permitido for. Dividi em 2 partes, porque ficou grande demais pro blog e pra ficar mais confortável de ler no FB. As concepções africanas aqui discutidas estão baseadas na mitologia dos yorubás, mas também cito os dagara. Tomei a liberdade de generalizar a concepção yorubá como exemplo de “AFRICANIDADE” com base no que Cheikh Anta Diop chama de “unidade cultural da África negra” e reconhecendo, por exemplo, a influência kemética desse povos. Lembremos, ainda, do que Asante chama de “sistema cultural preto” e de “unidade na diversidade”, conceitos que incluem a diáspora. De antemão, porém, já vou pedindo perdão pelo nagocentrismo. Vamos lá.)

INTRODUÇÃO

Sou casada com uma mulher preta e fui ensinada que, por isso, deveria me chamar “lésbica” (ou talvez “bi”, vai saber). Passeei pelos escritos da Audre Lorde e sua discussão sobre lesbianidade preta, pelas leituras do feminismo (especialmente do feminismo radical) que coloca a lesbianidade como uma espécie de posição política/evolução/emancipação; a concepção “sem rótulos” e condenadora da heterossexualidade da teoria queer; descobri a afrocentricidade (ufa!) e tenho buscado entender sexo/sexualidade(s)/afetividade(s) pelo viés do nosso povo. Esse ponto é fundamental neste texto: minha busca é entender como o povo preto, em suas bases, lida com a sexualidade antes da desgraça que foi a entrada da brancura nas nossas vidas, trazendo para nós genocídio e suas teorias brancas explicativas. Pois bem.

Primeiro eu gostaria de dizer que essa concepção de que pode-se assumir uma lesbianidade política muito me ofende. Contradiz, inclusive, o próprio discurso LGBT de que não se escolhe orientação sexual. Tenho lido muitas irmãs pretas escrevendo que “ser lésbica” é uma espécie de “evolução”, já que mostra de que não precisamos de “omi” pra nada. Seria, assim, o supra-sumo da emancipação da mulher. Três coisas: 1) eu preciso dos meus irmãos (e reduzir esse “precisar” a uma questão meramente sexual-reprodutiva é de uma branquice sem limites.) 2) Nós, todos nós, devemos 50% da nossa genética (e, portanto, a nossa existência) a um homem. Então vamos parar de discurso pronto. 3) Eu não busco a emancipação feminina pura e simplesmente, mas a emancipação do meu povo, o que significa o retorno/criação de uma sociedade matriarcal (logo, emancipação feminina também, mas não somente). – Já diz o Ba Kimbuta “Que retome o matriarcado. Mate o patriarcado.” Mulherismo africana é isso.

Segundo eu gostaria de dizer que a dita “heterossexualidade” preta é absurdamente revolucionária. Aliás, o amor entre nós é revolucionário. 1) Foi a “heterossexualidade” preta que deu origem a humanidade. 2) Pra um povo curado no veneno, reaprender a amar é tarefa árdua. Amar o opressor é a regra, difícil é a gente se reencontrar. Por isso, quando eu vejo muitos de nós escrevendo que odeiam “cis-heteros”, e que querem “acabar com a família tradicional brasileira” incluindo, nesse bonde, as estendidas (jamais nucleares!) famílias pretas, eu me pergunto: “o ocidente fez alguma coisa diferente de destruir nossas famílias pretas nos últimos 500 anos? Nos últimos 500 anos, quando foi que pudemos ter famílias e relacionamentos saudáveis?” Assumir o discurso de “acabar com a família”, entre nós, serve (e muito!) à supremacia branca. Eles já fizeram isso milhões de vezes. As famílias DE QUEM criaram esse sistema desgraçado? Saibamos a quem odiar.

Ao mesmo tempo, entretanto, vejo alguns irmãozinhos e irmãzinhas ditos afrocentrados que, na ânsia de reeguer o nosso povo, afirmam que a homo/bissexualidade não é africana e blá, blá, blá. Bom. O que eu quero, com esse texto é dizer que a homo/bissexualidade não é africana, muito menos essa concepção embranquecida da heterossexualidade de muitos. O que há de africano em ter filhos e não assumi-los, (um legado doentio da escravidão, mas mesmo assim, presente)? O que há de africano no discurso de posse, uma vez que África é partilha?

TERMOS E CONCEITOS

“Lésbica” é uma referência à ilha Grega (GREGA!) de Lesbos, local na qual a poetisa Safo montou o seu harém de mulheres brancas. Safo também era uma mulher branca. E quem decidiu que eu, mulher preta, deveria assumir uma identidade que faz referência a uma mulher branca grega? A cúpula branca do movimento LGBT. (Lembrando que o boom do movimento LGBT é um fenômeno social do século XX, tipicamente euro-estadunidense.) Fiquei pensando, então: “por que eu não poderia me dizer zami? Ou guardiã? Ou alakuatá?”

Engana-se quem pensa que se trata somente de uma mudança de nome. A concepção é completamente diferente, já que estamos falando de dois berços civilizatórios opostos: o africano e o europeu (lembrando mais uma vez e sempre da teoria dos dois berços do Diop, e que a diáspora também é Afrika). “Zami” é uma corruptela diaspórica do criolo que significa algo como “aquela mulher que trabalha junto com outra mulher enquanto amiga e amante” termo típico das comunidades pretas caribenhas (e que ficou muito famoso após a publicação do livro “Zami” da Audre Lorde. Comum, também, entre mulheres pretas que se relacionavam com outras mulheres pretas no âmbito do movimento negro, inclusive no Brasil). É bem diferente do termo/conceito ”homossexual”, ou, ainda “lésbica”. Se em “zami” o foco é a convivência (logo a construção, o dia-a-dia, a partilha de amor) em “homossexual” o foco é o desejo sexual e em “lésbica” a referência é a ilha comandada por uma mulher branca. Da pra enxergar o reducionismo que é a concepção branca?

Os conceitos de “gay” (rapaz alegre!?), ou “homo/hetero/bissexual” (estes últimos originários da psiquiatria colonialista do século XIX) nos contempla? Não partem eles da historicidade ocidental? (Vejam: a heterossexualidade está incluída.). Lembremos do que nos ensina Toni Morrison sobre como fomos privados de nos auto-nomear dentro desse sistema de supremacia branca. Foi a partir dessas nomeações e das concepções ocidentais de sexualidade da militância LGBT branca-euro-estadunidense que fomos levados a crer que homo/lesbo/bifobia são universais (assim como o machismo e o patriarcado) E ELES NÃO SÃO. Foi essa militância branca pós revolução sexual que transformou o sexo nesse oba-oba-produto. O ocidente moderno é sexocêntrico (se é que esse termo existe). Basta ligar a TV por 5 minutos que a gente comprova. Sexo é energia vital, não oba-oba. Essa sexualidade descontrolada-festa-ostentação (que é “homo” e também “hetero”) tem que relação com a nossa ancestralidade? E elas nos serve de que?

Por qual motivo foi necessário, no ocidente, os brancos LGBTs, se definirem a partir da sexualidade e transformar isso numa agenda de luta? Basicamente por causa da perseguição e patologização feita pelas igrejas, pela ciência e pelo Estado BRANCOS. Ou seja: é preciso deixar nítido que os “LGBTs” brancos sempre foram perseguidos pelo próprio povo branco deles, correto? E que isso os levou a criar a agenda LGBT, correto? Pois bem. Faz sentido, então, os pretos aderirem à denominação e agenda da militância branca LGBT se a perseguição deles conosco é também sexual MAS NÃO SÓ?
Aprendi com o Asante que a maioria das línguas africanas não possui nenhum termo semelhante a “gay” ou “lésbica”, MUITO MENOS “heterossexual”. A Sobonfu Somé também fala sobre isso quando se refere ao povo dagara: os “homossexuais” são chamados de “GUARDIÃES”, e tem um papel especial na aldeia porque são os únicos que tem a capacidade de se comunicar com os dois mundos, o mundo material e o mundo do espírito.(Observemos, mais uma vez, que o foco não é o desejo sexual.) Somé ainda afirma: para os povos dagara, toda sexualidade tem base no espírito.

Na prática, o que isso significa é que, africanamente falando, orientação sexual não gera identidade PRA NINGUÉM. Por isso afirmar a sua heterossexualidade afrocentrada, irmãozinho, não tem nada de afrocentrado. Por isso afirmar minha homo/bissexualidade enquanto agenda de luta também não. Fiz a opção política de não me definir a partir da minha sexualidade porque, apesar de existirem diversos termos que denotam relações de intimidade entre mulheres em yorubá, por exemplo, o foco destes termos (ao que me parece e, à semelhança de “zami”) não é o SEXO. Não é o desejo sexual. É muito maior que isso. Presumo, pois, que se definir a partir da sexualidade (seja ela qual for) não é afrocentrado.

Eu sou PRETA. A nossa luta é contra o sistema de supremacia branca e todas as suas fobias, teorias e porcarias. É O SISTEMA DE SUPREMACIA BRANCA que deve ser combatido (não enegrecido, nem concertado, muito menos adaptado). A luta LGBT é branca e limitada porque ela não pede o fim do sistema de supremacia branca homo/lesbo/bi fóbico. Querem o fim das fobias, e não a queda da brancura. E é a queda da brancura que nos interessa enquanto povo. Derrubem o sistema de supremacia branca (em termos econômicos, sociais, políticos, culturais e epistemológicos), que todos as “fobias” caem.

Bom, antes que me venham falar que a África é o pior lugar para um homo/bissexual viver com base no que a mídia branca afirma, lembremos, antes, de quem transformou a África no que ela é hoje. E é por isso que é mais fidedigno olhar pra África verdadeiramente africana. Uma África sem islamismo, nem o moralismo cristão. Uma África anterior ao colonialismo (não é essa a proposta da afrocentricidade?). Recorrerei, assim, à mitologia dos orixás, mais especificamente aos mitos de Logum-edé, Yansã e Oxum pra tentar compreender as concepções de sexualidade no berço africano em contraste ao berço europeu. (Lembremos do Diop mais uma vez, quando ele fala da importância da mitologia para a compreensão de um povo.)
(continua)
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PS1: outros termos africanos que falam de relações de amor entre mulheres: alabua; alajuatá; obinilogum; oremi; panchagayê. Para homens: adodi, adefantô,adô; adofiró; afofô; akenken; asokosobo; baniyé; ba-yé; diankuné; egbere;elenumeyei; eron kibá; obiní nana; obini toyo;obo okó; adodí; okobiri;okobo

PS2: vou elencar as referências quando finalizar a parte 2 do texto.

Fonte: Pensamentos Mulheristas

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