A geografia da lavagem de dinheiro

Por Samuel Lima.*
O jornal Valor Econômico (Caderno Eu & Fim de Semana, ed. 06/11/2015) nos oferece um bem acabado exemplo de como a imprensa pode contribuir para elucidar fatos, no caso os esquemas bancários disponíveis para o exercício da fraude, da evasão fiscal, da lavagem de dinheiro ilícito em todo planeta. A reportagem de Assis Moreira intitulada “O paraíso fica mais distante” joga luz sobre essa realidade menos morta do mundo “offshore”, na realidade um submundo bancário que esconde algo entre US$ 21 trilhões e US$ 32 trilhões da riqueza planetária.
Coincidência ou não, no mesmo dia o ainda presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ) concedia entrevista aos principais veículos tentando explicar que não era “dono” da fortuna encontra em seu nome na Suíça, mas tão somente “usufrutuário” – um palavrão que rima com “otários”, que talvez seja como o “nobre deputado” nos avalie.
Moreira relata o quão simples é abrir uma conta no esquema “offshore” e passar a fraudar a sociedade. O repórter entrou em contato com a NGK Banking, empresa fiduciária que opera com telefone da Inglaterra, mas cuja sede física é no paraíso fiscal de Seychelles, “uma das praças financeiras refratárias aos padrões internacionais anti-evasão fiscal”. Ele conta: “Depois de ter avisado, em telefonema, que tirar dinheiro do Brasil é complicado, Alexander, que se apresenta como diretor (da NGK), envia a solução por e- mail:

 ‘Para sua situação, o melhor é abrir uma empresa offshore em Hong Kong e uma conta na Letônia, por um custo total de €2.900. Assim, seu anonimato será totalmente garantido e a empresa dará o pretexto (importação/exportação) para transferir fundos do Brasil para a Europa. As despesas bancárias são mínimas, de €50 a 70 por ano, e a renovação da empresa custa €700 por ano. Estou à sua disposição’” (Fonte:http://migre.me/s4KwL).

Segundo os dados apurados pela reportagem do Valor, “os fluxos ilícitos de capitais do Brasil para o exterior quase triplicaram em dez anos, passando de US$ 12 bilhões em 2003 para US$ 33,9 bilhões em 2012” (Fonte: cit.). O cálculo foi feito pela Global Financial Integrity (GFI), de Washington. Trata-se de uma organização de pesquisa de monitora os fluxos financeiros ilegais e presta consultoria a Estados interessados em combater esse tipo de crime. Na mesma linha, a ONG britânica Tax Justice Network alonga mais o tempo e “calcula que o dinheiro retirado do Brasil totalizou US$ 519,5 bilhões entre 1970-2010, correspondentes a um quarto de US$ 4,2 trilhões que teriam saído ilegalmente da América Latina nesse período”. Ou seja, mais de meio trilhão de dólares foi sacado do Brasil e transferido para essa rede “oculta” em quarenta anos.
Crime financeiro e crise política
A questão de fundo, que liga o submundo dos banqueiros, seres soturnos, quase “esotéricos” que se alimentam de sombras e sigilos, é o impacto que o crime de lavagem de dinheiro, fruto da evasão fiscal e da corrupção têm sobre economias e democracias, sobretudo dos países mais periféricos – como é o caso do Brasil.

O economista Gabriel Zucman, professor na Universidade da Califórnia, ouvido por Assis Moreira, não demonstra surpresa com esses números da “indústria offshore”. Zucman é autor do livro “The Hidden Wealth of Nations” (A riqueza oculta das nações), cujo objeto é justamente as atividades financeiras em paraísos fiscais (dados inéditos). Ele é preciso e contundente em sua análise: “Paraísos fiscais estão no coração das crises financeiras, orçamentárias e da democracia”.

Para o autor, isso acontece em função das “implicações da evasão tributária para a qualidade das políticas econômicas aplicadas em cada país e desequilíbrios financeiros internacionais”. Zucman estima o estrago em “8% da fortuna financeira global de pessoas físicas estão em paraísos fiscais – US$ 7,6 trilhões em 2014, com perdas de US$ 143 bilhões em receitas tributárias para governos”. Dá pra imaginar o rombo nas contas dos países emergentes ou pobres, do ponto de vista das políticas sociais.
Nesse balaio, o deputado Cunha, quase ex-presidente da Câmara, jogou seus milhões de dólares, apenas como “usufrutuário” em vida – e de seus parentes, após sua morte. E jura que ganhou sua fortuna (US$ 2,4 milhões em francos suíços ou cerca de R$ 10 milhões em contas não declaradas no private bank Julius Baer, na Suíça).
Folha & JN: entrevistas bem distintas
Enquanto a reportagem publicada no Valor Econômico traça a geografia do crime financeiro, via paraísos fiscais (offshore, “trusts”, escroques, banqueiros, Suíça etc.), o deputado Eduardo Cunha, ainda inusitado presidente da Câmara Federal, dava duas entrevistas ao jornal impresso Folha de S. Paulo e ao Jornal Nacional (TV Globo).
Ao usar essas duas vitrines do jornalismo nacional para defender a tese de que o dinheiro não é seu, mas ele apenas usufruiu para suas despesas pessoais, Cunha lançou mão do último recurso disponível para reverter a formação da opinião pública contrária. Dois experientes profissionais o entrevistaram: Valdo Cruz (Folha) e Júlio Mosquéra (Globo).
Apesar da pauta única, do mesmo patamar de informações disponíveis pelos repórteres a priori, chamam atenção as diferentes atitudes que resultam em duas entrevistas com resultados muito distintos.
Cruz é preciso e abre com a indagação central:

 “O sr. disse que não tem conta no exterior, mas o Ministério Público da Suíça o aponta como beneficiário de três contas, sendo uma quarta de sua mulher. O sr. mentiu?”. Ao que Cunha responde: “Não tenho conta não declarada e não tenho empresa offshore, não sou acionista, cotista. Tenho um contrato com um trust, e ele é o proprietário nominal dos ativos que existiam. (…) Sou beneficiário usufrutuário em vida e os meus sucessores em morte” (Fonte:http://migre.me/s4L6i).

Sem conseguir responder efetivamente a nenhuma das perguntas feitas pelo repórter da Folha, Cunha saiu pela “tangente” (“não conheço o dono do trust” ou que ganhou essa fortuna “vendendo carne enlatada” etc. etc.) e restou dizer pela milésima vez que “é inocente e não fez nada demais”.
No “bate-papo” com Mosquéra (TV Globo) é possível observar um presidente da Câmara bem mais à vontade, posto que recebeu a equipe do JN em sua casa, na residência oficial. Com efeito, basta o/a leitor/a observar com atenção a pergunta de partida da entrevista: “Júlio Mosquéra: Quais eram os produtos que o senhor comercializava? – Eduardo Cunha: Eram produtos diversos alimentares, de natureza alimentar que eram basicamente produtos de consumo rápido, então consequentemente eu fazia trading, comércio exterior desse tipo de produto. Numa época onde teve muita proeminência que eu comercializei muito é o país que hoje é a República do Congo” (Fonte: http://migre.me/s4P6i).
O repórter da TV Globo abre espaço para que Cunha, acossado e acusado, tente provar a origem de seu dinheiro na Suíça, em vão: “Júlio Mosquéra: Presidente, o senhor tem algum documento que prove esses negócios, a compra aqui no Brasil? A companhia que usou para levar esses produtos e lá fora? – Eduardo Cunha: A companhia era uma companhia constituída fora do Brasil. Obviamente eu estou falando de assunto de 30 anos atrás, eu não tenho documento nem contabilidade de assunto dessa natureza e essa empresa já foi encerrada, desfeita” (Fonte cit.). O presidente da Câmara diz não ter nenhuma prova documental disso, mas se promete ao jornalista que iria “tentar” obtê-las junto aos bancos (sic).

Conhecido por sua contundência quando entrevista gente ligada ao governo Dilma Rousseff, Partido dos Trabalhadores e/ou aliados, Mosquéra não retruca o entrevistado, mesmo quando tem base documental robusta (no caso, Resolução do Banco Central que obriga qualquer cidadão brasileiro a declarar dinheiro em contas no exterior) e vai costurando, em off, suas respostas às evasivas de Cunha.

Nesse breve olhar é possível fazer uma boa distinção do jornalismo, como forma de conhecimento social e orientado pelo interesse público, e o “faz-de-conta” praticado pelos grandes grupos de comunicação. Há sempre que se ressalvar que temos muitos profissionais éticos e intelectualmente honestos para com o público e a sociedade. Sob o manto do sigilo e da suprema discrição típica dos banqueiros helvéticos, os escroques, financistas, políticos corruptos e ditadores de todos os quadrantes do planeta continuam fazendo a farra no submundo do sistema financeiro internacional.
A propósito, resgato a excelente reportagem de Assis Moreira (Valor): “Um banqueiro, em Zurique, diz que ‘o mundo do dinheiro fiscalmente ilegal terminou para nós’. Mas Myret Zaki, ex-analista financeira e autora do livro ‘O Sigilo Bancário Morreu, Viva a Evasão Fiscal’, observa que a indústria “offshore” gera grande parte dos lucros dos grandes bancos e não vai ser desmantelada tão cedo, apesar dos esforços internacionais”. Enquanto isso, na “sala de Justiça”, o “usufrutuário” Eduardo Cunha resiste…
(*) Professor da Faculdade de Comunicação da UnB; pesquisador do Laboratório de Sociologia do Trabalho (LASTRO/UFSC) e do Observatório da Ética Jornalística (objETHOS/UFSC).
 
Imagens: jornal Valor Econômico.

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