A fala de Prometeu

Por Nei Duclós.
O mundo não existe e nenhum lugar faz sentido. Não se trata de niilismo ou pessimismo, é a pura verdade e nada podemos fazer contra ela. Raspe o edifício e renasce o terreno baldio que o precedeu. Continentes submergem sem deixar vestígios. A cidade abandonada não guarda nenhuma memória. Tua infância jamais te pertenceu. O noticiário se repete porque exauriu sua capacidade de iludir. Tudo flui para o nada nesta rua de fim de bairro, onde as pessoas chutam pedras a esmo, solitárias.
As perguntas já foram respondidas: nascemos para passar o tempo, vivemos para acumular dúvidas e desaparecemos entre gargalhadas alheias ao nosso martírio. A vida pessoal é uma obsessão de mentes que se ocupam à toa. Falar da vida alheia parece ser uma saída para o vazio universal, mas chega a hora de fechar a porta, recolher-se, e deixar que as corujas ocupem o telhado. As televisões nos assistem e caem no sono.
É inútil ocupar-se com planos, eles serão traídos. É exaustivo palmilhar os caminhos, eles nunca te levam ao destino. Não há poder em existir, mesmo que reines sobre a face da Terra. Teus súditos voltarão as costas quando menos esperas. Eles compartilham da mesma sina, a indiferença total do Mistério que nos circunda. Há os que tentam extrair poesia do céu estrelado, mas a Via Láctea empedrou e empurra o Cruzeiro para o abismo.
O bocejo é a única lei universal. Bilhões de criaturas nascem para dormir. Quem se insurge contra esse absurdo acaba sendo insuflado pela insônia. Garfos rasgam imaginações soltas da vigília. E o sono toma conta de tudo, numa catedral onde o breu é a divindade. Insetos chiam num horizonte de agulhas. Corvos piam em janelas infecundas. Socos e surras se agrupam em torno de almas de vime. A metralha varre como granizo. Há nucas quando frontes se exaltam. E costas largas que abrigam crimes.
Não existe carne desperta no açougue sombrio. Nem sossego nos corredores de fúria. Nossos pés mergulham em areias frias. Minas somem dos mapas, tomados pelos fungos. Facas cortam a luz que urra na margem do rio. Há algo de roedor nas fuças dos minutos. As horas suam nas cavernas surdas. E escorrem, pelas trilhas dolorosas de pássaros extintos.
Nada existe, a não ser a linguagem. Tudo finda, com exceção da palavra. O que nos ocupa não tem importância, o que pega é o texto, o verso, a frase, a letra. As falas são os únicos sobreviventes do massacre. O dito é o que ressurge, cria, funda. O amor é seu filho, a dor sua prova. Passam os séculos, mas tua sílaba fica. Como um fígado que renasce diante do abutre. És ladrão do fogo, Prometeu acorrentado, a cuspir no medo. De tua boca sai a metáfora, a sentença, o desafio da pitonisa, a salva de canhões, o grito.
Basta tua garganta para revelar a senha, submersa pela sanha assassina. A vida escapa, mas teu poema é a corda sobre o precipício. É espantoso ver Deus pôr-se de pé quando enfim consegues achar o som forjado em tua glória. Estendes então o dedo em direção a esse gesto de Capela Sistina. És a Criação, e a Terra enfim te acolhe, na semeadura utópica e sem motivos. Agora és um ruído de sementes em direção às águas. Brotas dessa brutalidade vaga, feita de ossos.
Teu rosto emerge na tormenta. A superfície se acalma. Um sopro cruza teu coração como um espírito.

 

 

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