A estética do vazio

Por José Geraldo Couto

Imagem: Filme Cicatrizes/ Reprodução

Passada a ressaca do Oscar, chegam aos cinemas filmes interessantes que ficaram de fora da festa. É o caso do sérvio Cicatrizes, de Miroslav Terzic, que era o candidato do país à estatueta de filme internacional, mas não ficou entre os finalistas, o que não diminui sua qualidade e sua importância.

É, por assim dizer, a história de uma ausência. A narrativa começa quando já faz dezoito anos que a costureira Ana (Snezana Bogdanovic) entrou na maternidade para dar à luz seu segundo filho e saiu de mãos vazias. Na época, disseram-lhe que o bebê nasceu morto, mas ela nunca chegou a ver seu corpo.

Como lidar com esse vazio? O marido e a filha mais velha de Ana parecem ter vivido devidamente o trabalho do luto e tentam convencê-la a fazer o mesmo, tocar a vida, esquecer o passado. Mas ela reluta. Em seu rosto vemos um misto de angústia e obstinação. Contra tudo e contra todos – médicos, burocratas, polícia, parentes –, Ana não parece disposta a ficar quieta enquanto não descobrir o que se passou no hospital duas décadas atrás.

Lacuna e pesadelo

Poderia ser apenas um filme-denúncia sobre os inúmeros casos de roubo e venda de bebês recém-nascidos durante o caos da guerra da Bósnia, em meados dos anos 1990. Mas é muito mais que isso. Inspirado no depoimento de uma mulher que viveu uma situação parecida, Cicatrizes sobrepõe e entrelaça de modo sutil a dimensão social e a íntima, o registro histórico e o drama humano atemporal.

Sem abandonar jamais o tratamento realista e a verossimilhança, o diretor Miroslav Terzic consegue criar uma atmosfera de incerteza e conspiração que se aproxima do pesadelo. Isso se dá em parte graças a uma construção narrativa que alterna o ponto de vista da protagonista e os planos mais gerais (mostrando-a pequena e frágil em ambientes opressivos ou amplos demais) e a uma dramaturgia feita de silêncios, sussurros, conversas entreouvidas, frases cortadas, olhares significativos.

É possível dizer que Cicatrizes faz do próprio vazio, da sensação de “algo que falta”, um elemento de sua composição. No rosto inescrutável de Ana (numa atuação fantástica de Snezana Bogdanovic) se traduz a incompletude deliberada do filme, sua encenação da lacuna irrevogável que mantém a personagem viva e a empurra para o desfecho, inesperado e belo como poucos.

Oscar do mal-estar

Sobre o Oscar deste ano já se falou tudo, ou quase. A vitória acachapante de Parasita, de Bong Joon-ho, expôs o bom momento do cinema coreano, propiciado por uma geração de cineastas talentosos, mas também por uma política pública exemplar de fomento e amparo à produção local – coisa que o Brasil também construiu nas últimas décadas e hoje sofre processo de desmonte.

Mas o Oscar, definido corretamente como “festa da indústria”, é também um termômetro interessante de tendências sociais, culturais e políticas. O espírito do tempo, de alguma forma, se corporifica ali, para além do tapete vermelho, dos trajes de gala, dos discursos edificantes, das piadas infames e dos números musicais cafonas.

E este ano o que fica disso tudo é uma sensação geral de mal-estar com os rumos do mundo. É esse sentimento, ao mesmo tempo difuso e muito concreto, que aproxima filmes tão díspares como ParasitaCoringa Indústria americana, o vencedor entre os documentários. Em todos eles salta aos olhos a precarização do trabalho, a corrosão de valores caros à democracia, o esgarçamento da convivência humana, a indistinção entre a realidade e a propaganda (ou as fake news).

“O mundo tá muito doente – o homem que mata, o homem que mente”, diz uma canção da banda Karnak. Talvez se possa resumir assim o recado do cinema, para quem quiser ouvi-lo. Foi, em suma, uma festa amarga.

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