Por André Ortega.
notícia da morte de Moniz Bandeira foi recebida pela Revista Opera com grande pesar. A obra deste pensador é fundamental nas definições dos caminhos e posicionamentos da revista, em especial em nossa preocupação com o cenário internacional.
Sem Moniz Bandeira a Revista Opera simplesmente não existiria como é hoje e nunca teria se aventurado em programas como o Posto Sul, um experimento “moniz banderiano” em vídeo. Seguimos nos esforços para ser um pequeno contraponto ao pensamento dominador que se dissemina nos grandes meios graças a autores como Moniz Bandeira.
A obra de Moniz fala por si através de sua extensão, profundidade e brilhantismo. O mais importante é que ela se comunica com as necessidades políticas e históricas do nosso país.
Um país não está isolado no meio no mundo, nem está flutuando no tempo como se não houvesse passado. Uma concepção nacional inteiramente consequente pressupõe uma concepção de internacional.* A questão do desenvolvimento de um país não pode ser tratada de forma trivial, como mero problema de gestão ou de fórmulas econômicas, pois ela tem uma dimensão histórica e na prática exige uma consideração séria sobre o papel que esse país cumpre no mundo e como se relaciona com os outros. O equívoco já muito cometido de pensar em História somente como um processo temporal (e seu registro) dos diversos conflitos e uniões entre os povos tem algum fundamento, afinal; não é um equívoco a toa.
O Brasil sempre foi um país dependente e subalterno. Saímos da condição colonial para cair em uma ulteror situação de subordinação aos Estados Unidos e à ordem econômica internacional estruturada por aquele país. Moniz Bandeira não só pontua diversos momentos de intervenção concreta dos EUA na nossa vida política e nosso incipiente estado-nação, como descreve a evolução daquela ordem econômica internacional nas formas de um sistema hiper-imperialista, uma globalização hierárquica com novos níveis de rapina financeira e intervenção militar. É nesse mundo que estamos inseridos; o sistema não é simplesmente uma máquina impessoal mas uma ordem de dominação onde se assentam interesses concretos – esses interesses não vão deixar tudo ao acaso e criarão suas defesas. Moniz descreve a formação dessa ordem em “Formação do Império Americano” e também estuda as próprias mutações internas no regime norte-americano por conta desses interesses, criando um regime mais oligárquico e militarizado.
Qualquer coisa a ser feita no Brasil, portanto, será feita em relação a essa ordem das coisas, pois por ela estará enquadrada – no mais primitivo deverá se opor ou se conformar. Não teremos que lidar somente como uma estrutura feita para tirar vantagem do nosso país, sugar o nosso trabalho, mas enfrentar uma super-potência governada por uma oligarquia disposta a jogar sujo contra nós caso seja necessário. Moniz expõe essas ferramentas e declara a nossa encruzilhada histórica: a dimensão grandiosa do Brasil só dá duas opções para ele, uma é o desenvolvimento e a outra é o caos.
É necessário entender essa posição quando se reclama dos rumos de nosso país. Qualquer movimento do nosso país vai de encontro aos planos de hegemonia dos Estados Unidos – hegemonia militar de um império capaz de intervir no mundo todo, a hegemonia ideológica nos meios de comunicação e informação, o controle estratégico dos recursos naturais e a hegemonia econômico-financeira. Não adianta reclamar para o nada sem entender nossa condição – precisamos ter o olho fixo no cenário maior para poder conseguir mais do que soluções, mas conquistar liberdade, o fim de um ciclo infernal das elites covardes que nos governam se acertando dentro dessa ordem global, humilhando aqueles que até hoje humilharam e deixaram o Brasil de joelhos.
Sempre existiu do outro lado um partido da “conformação radical”, os defensores do Brasil subordinado as grandes potências, inferior e discreto, desarmado, tímido, desindustrializado, dependente do capital estrangeiro como estratégia para se desenvolver e se favorecendo da condição de ser “economia complementar”, apontando nossas “vantagens comparativas”, cultuando a estabilidade monetária e a liberdade cambial; tratamos de um país que deveria compreender a própria inferioridade por razões culturais e históricas, então não é difícil ver os representantes desse partido como portadores de uma certa mentalidade colonial (ao mesmo tempo colonizada e colonizadora). Esses são os que abraçaram a ideia de um grande condomínio norte-americano onde nós devemos crescer sabendo se adequar. Eles se reivindicam como “realistas”(Menem, representante dessas mesmas ideias na Argentina, chamou de realismo periférico), apesar de suas posições irem para o lado oposto de um realismo estatal que prescreveria, por exemplo, uma aproximação sul-americano distinta do modelo neoliberal comercialista de integração (preconizando pelos ianques). Esse partido teve grandes representantes como Carlos Lacerda, Roberto Campos, Castelo Branco, Collor e Fernando Henrique Cardoso. Ele também tem pequenos epígonos na mídia, que hoje em dia defendem coisas como o “fim do exército brasileiro” (proposta totalmente afim da estratégia norte-americana de transformar a América do Sul em quintal pacífico).
Moniz Bandeira é um grande representante intelectual do partido oposto: traçou um panorama para tirar país da submissão, mostrou a nossa posição no mundo, mostrou como funciona o domínio da maior super-potência mundial e como países muito menores são subvertidos, destruídos por estratégias que envolvem políticos locais, ONGs internacionais e grupos terroristas. Esse conhecimento é um tesouro para aqueles que querem transformar a realidade. No mais prático, ele é mais um dos defensores da industrialização, da expansão tecnológica, da criação de um grande mercado interno, da autonomia e diversidade internacional, da independência – projetos muito concretos que podem atrapalhar a estratégia dos imperialistas.
É difícil falar dessas coisas numa época de expansão do mundo comunicacional (redes sociais, etc.) em que pessoas militam pela desgraça do país e assumem até uma identidade hostil aos ideais de independência. Moniz Bandeira pode ser o intelectual que esse país precisa, mas é o intelectual que esse país merece?
Surgiram movimentos de jovens “liberais” para defender a entrega do nosso país para os estrangeiros.
Há gurus farsantes com culto liberal entorno de si, vendendo livros e espalhando zumbis nas redes sociais.
Existe militar golpista realizando pronunciamentos e defendendo a destruição da nossa economia, sem ideia de nação.
Os incautos, muito ingênuos, projetam sentimentos nacionalistas em um Bolsonaro. Não adianta dar voto pro Bolsonaro “mudar alguma coisa” se ele tem uma visão declarada do Brasil como um país subalterno, um país fraco, um país condenado a ser periférico, inferior e agro-exportador, um quintal. Esta figura chegou a defender em uma entrevista com um “youtuber” (ah, o século XXI!) que não podemos engrossar a voz com os Estados Unidos nem para defender a Amazônia!
Existe uma falta de cuidado com pensamento geopolítico, gerando resistências nas pessoas para se pensar em política externa. Alguns dirão que eu só fiz referências à direita, que a direita é parte do problema. Ótimo, mas a esquerda que em tese deveria ser mais consciente não é livre de contaminação.
Daí mudamos o título: Moniz Bandeira é o pensador que a esquerda precisa, mas não a que ela merece.
Uma esquerda que recusa a falar em projeto nacional não merece Moniz Bandeira.
Uma esquerda que abaixa cabeça para o FMI.
Uma esquerda que se recusa em pensar em construção de Estado, que se recusa em pensar em termos de civilização, que se comporta de uma maneira mesquinha e miserável, sem dimensão histórica.
Nós conhecemos o que os canalhas produziram nas academias e institutos até hoje: usaram termos como “populismo”, denunciaram o “estatismo”, abraçaram o mercado, se disfarçaram com a retórica dos “movimentos sociais e sociedade civil”, chamaram as análises de imperialismo e submissão de “atrasadas”. Saudaram a “Nova Ordem Mundial” e agora todos vemos essa ordem ruir em caos, terrorismo e destruição. Não vivemos numa utopia de mercado democrática com “sociedade civil forte e movimentos sociais vitoriosos”, vivemos numa distopia em escalada.
Esquerda pautada por ONGs estrangeiras, esquerda que renuncia a nossa soberania, esquerda que debocha do anti-imperialismo e até apologia dos Estados Unidos faz (vide Jean Wyllys) – são todos indignos de Moniz Bandeira.
Sim, “indigno” porque penso no trabalho que deu para compor uma obra desse tamanho para meia dúzia de arrivistas eleitorais se aproximarem do poder (ou do parlamento) em nome da “esquerda” e cortejar os Estados Unidos e não enfrentar a raiz dos nossos problemas. Toda uma história de lutas pela independência e todo um conjunto de pensadores para quê?
Se “esquerda” significa transformação social, então nem de esquerda podemos falar, porque não existe transformação social sem pensar em imperialismo. Podemos chamar, então, de “esquerda-puxadinho”. Os partidos são máquinas eleitorais míopes para a questão exterior.
Do que adianta se dizer de esquerda mas ser partidário ou ativista do Brasil dependente e dominado?
Aliás, não é chocante que Fernando Henrique, o algoz neoliberal, não fosse um militar carrancudo com desprezo pelo cheiro do povo, mas sim um intelectual sorridente e “progressista” que falava do futuro, da modernização? Um aluno de Florestan Fernandes?! Quantos assim não saíram de universidades como a USP (antro de acadêmicos que da sua mesquinharia desprezam intelectuais de verdade como Moniz Bandeira) e até hoje, diferente de FHC, são todavia considerados “de esquerda”?
Tudo que acontece no Brasil é preocupante para os interesses que controlam o sistema internacional. Os lutadores sábios serão aqueles que guiarão o nosso país cortando essas amarras e afirmando a grandeza de todas as possibilidades históricas que estão ao alcance do nosso povo.
Neste caminho, Moniz Bandeira é uma tocha luminosa para brandir contra os animais raivosos que habitam a nossa escuridão. Nós carregaremos esta e outras tochas que nos darão a luz até que a manhã luminosa chegue para todos.
Não adianta pensar em termos miseráveis e renunciar a nossa condição geopolítica. Somos um grande país, não um condomínio, não um resort, nem uma brincadeira.
Temos que pensar em geopolítica e em Brasil-nação. Todo nosso posicionamento e nossa vida política depende disso, construção de civilização, de Estado, a conquista dos direitos, a liberdade como uma construção.
Moniz Bandeira vai como o maior pensador nacionalista do Brasil contemporâneo, mas ele só o foi precisamente porque Moniz era também um grande internacionalista. O internacionalismo não deve nos fazer cair nas armadilhas do pacifismo barato e das mentiras globalistas, que defendem o desarmamento da nossa soberania como um “avanço humanitário”. Devemos seguir o exemplo do grande intelectual não para nos elevarmos enquanto indivíduos ou simplesmente porque este era um grande indivíduo a ser louvado, mas porque esse é o caminho necessário. Moniz Bandeira é, como está cravado no nome, mais que um autor, é uma bandeira – bandeira daqueles que querem lutar contra nossas mazelas sociais e vulnerabilidades, pela realização de um projeto nacional consciente feito para inserir nosso país na história com força e dignidade. Essa é a bandeira do marcha árdua pela independência.
O estudo é necessário para ter consciência e responsabilidade de nossas escolhas que estão entre esses dois polos da história.
“O tempo, na mitologia germânico-nórdica, é indivisível. O passado mantém-se vivo e desdobra-se no presente, que flui continuamente, como poderosa realidade”, disse ele em um dos seus últimos livros. Em nossos esforços buscamos ser o desdobramento dos esforços de Moniz Bandeira na atualidade, esperando que esse aprendizado se converta num fluxo contínuo de transformação da realidade e que o aprendizado se torne consciência. Moniz Bandeira vive.
Semper honos nomenque tuum laudesque manebunt. – Virgílio, Eneida livro I linha 609
*Isso me lembra a argumentação hegeliana do sociólogo de George H. Mead, quando tratava do desenvolvimento das sociedades como um processo transnacional de aquisição de uma autoconsciência: uma nação adquire consciência de si ao olhar para as outras nações. Moniz Bandeira era ele mesmo muito hegeliano.
Fonte: Revista Ópera