A esquerda e a encruzilhada do Fora Bolsonaro

A permanência de Bolsonaro poderá se mostrar cada vez mais insustentável, constituindo, em um curto intervalo de tempo, uma espécie de consenso nacional superior ao da queda de Fernando Collor.

Por Erick Kayser.

Antes de mais nada, preciso deixar nítido que se parte aqui da premissa que o Brasil não está mais sob uma democracia. Não estamos (ainda) em uma ditadura e a “velha” democracia – aquela celebrada na redemocratização com a Constituição de 1988 – não está formalmente morta. Contudo, mesmo não tendo seu atestado de óbito emitido, a democracia brasileira não está viva, mas talvez, como nos versos de Luiz Melodia, padecendo de uma “abundantemente morte”. Estamos vivendo como que no interstício entre uma democracia em falecimento e um autoritarismo que ainda não vive plenamente.

A presidência de Bolsonaro é a tentativa de uma guinada para o pleno fechamento autoritário do sistema político brasileiro. Com estes pressupostos, a oposição pela esquerda deve partir do fato dado que este não é um governo normal, mas uma anomalia. Estamos diante de um governo politicamente autoritário que paradoxalmente se utilizou da democracia para se estabelecer. Com a legitimidade do voto, o governo Bolsonaro usurpa os instrumentos democráticos para destruir a própria democracia. Enfrentar um governo assim exige uma compreensão, ainda que provisória, de sua natureza peculiar, como forma da esquerda melhor organizar a resistência a seu avanço e construir as bases para a futura derrota do projeto autoritário.

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A sequência dos principais acontecimentos que impulsionaram o esfacelamento do sistema democrático brasileiro é bem conhecida. O seu marco zero, por assim dizer, foi com o golpe do impeachment contra a presidenta Dilma Rousseff, seguido pela posse de Temer e a imposição de um radical programa neoliberal; o assassinato de Marielle Franco e, para garantir a continuidade da agenda autoritária de reformas do Estado, foi ainda necessário prender, condenar e impedir que concorresse à eleição o ex-presidente Lula, favorito nas pesquisas eleitorais. O último capítulo do morticínio da democracia brasileira foi a eleição de Bolsonaro que, numa conceituação clássica, pode ser enquadrada como uma contrarrevolução preventiva. Uma medida política de exceção tomada de forma um tanto despropositada, visto não haver revolução popular alguma no horizonte brasileiro. Mas se não havia uma revolução desenhada, também não significa que não houve resistência popular.

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Durante todo este processo político de regressão democrática, muitos setores se organizaram e lutaram contra esta escalada autoritária e sua agenda neoliberal. Uma resistência democrática que em alguns momentos teve força para impedir um aprofundamento ainda maior dos retrocessos sociais, como na greve geral de 2017. Mas este novo autoritarismo brasileiro também se utiliza das ruas, como nos massivos protestos contra o governo Dilma e em defesa da Lava Jato. Para alterar a agenda de políticas regressivas, o campo democrático e popular teria que demonstrar nas ruas uma força multitudinária robusta, num movimento de massas socialmente majoritário capaz de rapidamente alterar o jogo político. A expectativa era de que setores populares, até então adormecidos frente as grandes embates políticos nacionais, tendo seus direitos sociais e políticos atacados, viessem, mesmo que no “dia seguinte” a despertar e tomar as ruas, mas, como na música de Luiz Melodia, “No dia seguinte. O seguinte falhou.”

A vitória eleitoral do bolsonarismo se deu através de uma onda conservadora que obliterou os sentidos tradicionais da política brasileira. Hoje se sabe que muito desta onda reacionária foi artificialmente produzida, numa cada vez mais evidente manipulação do resultado eleitoral. Mesmo em condições adversas e tendo de adotar uma postura política defensiva, a esquerda brasileira segue relevante e com força política, mas hoje insuficiente para, pela via da mobilização de rua, alterar a correlação política. Por esta razão, quando recentemente alguns setores ligados ao centro ou mesmo a direita passaram a especular publicamente a queda de Bolsonaro, parte da esquerda passou a considerar o Fora Bolsonaro como caminho para recuperar uma condição de protagonismo político no país.

Ostentando a pior avaliação de um presidente em incio de mandato e com resultados iniciais pífios no governo, este movimento de gradual descolamento de alguns setores da direita expõem a notável perda de força política do bolsonarismo. A grande questão colocada é: esta perda de fôlego do bolsonarismo já é suficiente para provocar sua derrocada? Hoje, ainda não, mas talvez em breve sim.

Neste último período, o governo tem sofrido um forte abalo em seu tripé de sustentação: a economia com Paulo Guedes (que segue patinando em falidas receitas neoliberais sem encontrar solução para os 12 milhões de desempregados); o lavajatismo com Sérgio Moro (cuja credibilidade foi duramente abalada com o escândalo da Vaza Jato) e a própria figura de Jair Bolsonaro. Após uma sequência de declarações tresloucadas de Bolsonaro em julho, que foram desde a defesa do trabalho infantil ao preconceito contra nordestinos, recolocaram o discurso de ódio bolsonarista no centro das críticas. Mas o ataque de Bolsonaro fazendo alusões ofensivas contra a memória do pai do presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, desaparecido durante a ditadura, chocou a opinião pública. A ofensa verbal do presidente parece ter cruzado uma fronteira perigosa, ampliando a percepção geral na sociedade sobre os riscos e incertezas políticas para o país de ter uma figura como Bolsonaro no Planalto.

Fala-se na quebra de decoro, um tanto evidente, das declarações públicas do presidente. Se o grotesco da forma como agrediu a memória de Fernando Santa Cruz, uma vítima comprovada do terrorismo de Estado, escancarou o viés ditatorial e anti-humanista que orienta o bolsonarismo, este não foi um caso isolado. Declarações que ferem o decoro presidencial abundam as centenas nestes sete meses de governo. O absurdo se tornou o novo “normal” do Brasil. Isto não é casual, é parte de uma estratégia deliberada do atual governo e que tem demonstrado, até aqui, contar com certa complacência dos demais poderes. Será que estaríamos prestes a ver o fim desta tolerância velada das instituições democráticas, pelo menos daquelas ainda restantes no país, com a escalada ao autoritarismo?

Se isto ocorrer, o Fora Bolsonaro passaria a ganhar força no “andar de cima”. A permanência de Bolsonaro poderá se mostrar cada vez mais insustentável, constituindo, em um curto intervalo de tempo, uma espécie de consenso nacional superior ao da queda de Fernando Collor. Nesta perspectiva, se eliminaria o mal maior, a figura odiosa de Bolsonaro, evitando-se um catastrófico rumo na política nacional com sua permanência. A esquerda poderia ganhar a narrativa das ruas em um eventual movimento massivo pelo Fora Bolsonaro? É possível, ainda que a experiência recente nos protestos de junho de 2013 pareçam indicar o contrário. A esquerda jamais deve temer mobilizações espontâneas, pelo contrário, mas a domesticação das ruas e seu direcionamento para uma saída conservadora para queda de Bolsonaro seria um dos primeiros desafios, mas este ainda não seria o maior deles.

Nosso maior desafio é que, infelizmente, nesta encruzilhada política, nossos problemas não se restringem a figura patética de um presidente mentalmente perturbado. Na forma como o derretimento do bolsonarismo está posto, sem vir acompanhado de uma profunda crítica as políticas neoliberais ou ao autoritarismo político já vigente, cairia o presidente e assumiria seu vice, o Gal. Mourão. Um impeachment de Bolsonaro não provocaria novas eleições e Mourão certamente assumiria o governo mantendo as mesmas políticas e talvez até os mesmos ministros. Um governo Mourão seria uma frágil tentativa de normalizar uma ruptura não apenas democrática, mas também social, que não pode ser normalizada.

Frente esta encruzilhada, algumas vozes da esquerda colocam-se receosas quanto ao apoio aberto por uma campanha pela queda de Bolsonaro. Alguns chegam a usar como argumento que “não podemos banalizar o instituto do impeachment”, ou que seria educativo ao país penar quatro anos com o bolsonarismo para assim o povo aprender a votar melhor ou ainda, noutra direção, a renovação das velhas teses do “quanto pior, melhor”, de que um país mergulhado no caos bolsonarista, poderia permitir alguma forma de “redespertar das massas”. Esta última perspectiva, demasiadamente fantasiosa, esquece que, num país economicamente arruinado e socialmente cindido, teremos provavelmente o oposto: as condições ideais para a construção de movimentos de massa de tipo fascista, algo que o bolsonarismo ainda não conseguiu. Quanto aos críticos a “banalização do impeachment”, estes parecem esquecer que o impeachment se banalizou no momento que uma presidenta honesta foi deposta por “pedaladas fiscais”. Por fim, não existe “educação democrática” para a cidadania do voto tendo um governo antidemocrático, sua continuidade, sob qualquer prisma, seguramente será ruinosa. Mais do que isso, um Brasil governado quatro anos por Bolsonaro poderá resvalar para alguma perigosa forma de regime fascista. Não podemos ter dúvida que a interrupção da presidência de Bolsonaro seria uma vitória para a esquerda e os setores democráticos da sociedade.

Um movimento pelo Fora Bolsonaro só teria sucesso com a esquerda tomando as ruas e a convertendo em uma bandeira de luta popular. Mas para não cair na armadilha de um governo Mourão, deverá exigir, conjuntamente com a queda de Bolsonaro a realização de novas eleições presidenciais. Somente através do voto se poderá assegurar as condições de legitimidade para um novo governo alterar a rota do presidente deposto. Pode soar, neste momento, um tanto irrealista pedir eleições diretas, por esta consigna ainda não encontrar apelo popular. É um fato, mas esta situação pode ser alterada. Se a esquerda, desde já, passar a empunhar a bandeira por novas eleições, esta poderá se converter, adiante, em um movimento cívico irrefreável.

Um país com sua democracia “abundantemente morta” e que têm um presidente eleito através de fraude, só poderá recuperar algo de vida para sua democracia com o voto popular em eleições livres. Não existem soluções mágicas para os infortúnios políticos brasileiros; neste momento não deve haver vacilos para a esquerda da necessária centralidade na defesa do que nos resta de democracia. A queda de Bolsonaro acompanhada de novas eleições seriam o caminho ideal para frear o fechamento autoritário do país e esboçar uma reabertura. Recorrendo aqui mais uma vez aos versos de Luiz Melodia, com uma queda de Bolsonaro, a democracia seria “Um morto mais vivo”, mas se for seguida por novas eleições, nossa democracia seria “Um morto que viveu”.

Erick Kayser – Doutorando em História pela UFRGS

A opinião do autor/a não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

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