“A escola não ensina sobre as lutas e conquistas das mulheres e pessoas negras”

Diante do silêncio e invisibilidade reservados pela historiografia oficial a nomes como o de Antonieta de Barros, primeira mulher negra eleita deputada no Brasil, ou Laudelina de Campos, fundadora do primeiro sindicato de domésticas, a escritora cearense Jarid Arraes resolveu agir.

Partindo da premissa de que o combate ao machismo e ao racismo perpassa pelo reconhecimento das conquistas, participação e contribuições das mulheres e pessoas negras, de forma geral, para a humanidade, a filha e neta de cordelistas começou a compor seus próprios pautados pelas histórias e legado das heroínas negras da nossa história.

Em entrevista ao Centro de Referências em Educação Integral, Jarid falou sobre seu mais recente trabalho, Heroínas Negras Brasileiras em 15 Cordéis, a ser lançado no dia 1 de junho, em São Paulo, além da importância de temas ligados ao feminismo, movimento negro e LGBT estarem presentes na escola para o desenvolvimento integral do indivíduo.

Centro de Referências em Educação Integral: Como nasceu o livro Heroínas Negras Brasileiras em 15 Cordéis? Como fez para selecionar os nomes que integrariam a obra?

Jarid Arraes: Há quatro anos, comecei a Coleção Heroínas Negras na História do Brasil, em cordel. Em folhetos avulsos, fui escrevendo biografias de grandes mulheres negras que marcaram a nossa história e, ao todo, cheguei no conjunto de 20 obras dessa coleção. Por causa do sucesso, achei que transformar a coleção em livro seria um passo importante para torná-las acessíveis de outra forma. Escolhi, com a editora, 15 heroínas levando em consideração a diversidade entre elas, tanto de períodos históricos em que viveram e atuaram – como líderes quilombolas – até regiões do país, já que conseguimos colocar mulheres de estados variados.

Acho importante ter esse cuidado, porque isso mostra a diversidade de lutas e personalidades entre as heroínas negras. São diferentes, lutaram por várias causas, marcaram a história em épocas diferentes, cada uma na sua própria linha de frente, e isso é muito inspirador. Então temos escritoras, como Carolina Maria de Jesus e Maria Firmina dos Reis, temos uma política, que foi a Antonieta de Barros, temos a fundadora do primeiro sindicato de empregadas domésticas do país, a Laudelina de Campos, além da Tia Ciata, importante figura do candomblé e do samba, e muitas líderes da luta contra a escravidão.

Centro de Referências em Educação Integral: Sabemos da imprescindibilidade de dar visibilidade e voz para as mulheres negras. Quais impactos você espera gerar com a obra?

Jarid Arraes: Já tenho visto os impactos positivos dessas histórias, desde que eram cordéis em folheto. Minhas obras são muito utilizadas em escolas, por educadores que querem abordar esses temas de uma forma acessível e envolvente, e sempre recebo depoimentos, fotos e vídeos das atividades.

É maravilhoso, porque vejo crianças e adolescentes conhecendo histórias que não tive oportunidade de conhecer quando eu era estudante. Nunca ouvi falar dessas heroínas negras na escola ou na mídia, mas agora podemos fazer diferente, podemos apresentar líderes grandiosas que construíram um legado inegável e que nos beneficia enquanto sociedade por inteiro. Espero fazer diferença na vida das pessoas, seja porque entram em contato com um conhecimento que tentaram apagar, mas que é muito potente, seja porque existe ali a possibilidade de se enxergar, de encontrar referências, inspirações e espelhos que geram coragem, que mostram que é possível peitar o machismo, o racismo e outras formas de discriminação.

Centro de Referências em Educação Integral: Por que a escolha do cordel como linguagem narrativa? Como ela se relaciona com sua ancestralidade?

Jarid Arraes: O cordel é uma literatura acessível, melódica, que tem uma identidade marcante e que é gostosa de compartilhar. É também muito barata, por isso se torna tão acessível para qualquer pessoa. Acho isso muito importante, porque, muitas vezes, o ambiente das livrarias e das bibliotecas pode se tornar inacessível, intimidador, caro, enquanto o cordel pode ser passado de mão em mão, lido em grupo, entre a família e os amigos, e isso faz muita diferença.

Quando pensei em escrever cordel e dar continuidade a tradição da minha família, pensei na chance que eu tinha de abordar temas necessários e de fazê-los circular, atingir as pessoas, gerar transformação. Meu avô e meu pai são cordelistas e a literatura de cordel é muito importante para mim; eu cresci lendo, encantada, era fascinada pelos folhetos, pelas capas e títulos, mas percebo que o cordel não é valorizado no Brasil como literatura tanto quanto a literatura que está nos livros. Acho isso terrível, reflexo do preconceito que o nordeste sofre, e tenho como convicção o combate a essa discriminação.

Centro de Referências em Educação Integral: Sabemos que o racismo e o machismo continuam enraizados na estrutura e currículo das escolas. Nesse sentido, o livro pode ser uma ferramenta de combate a este quadro ao evidenciar os feitos da população negra e, principalmente, de suas mulheres?

Jarid Arraes: Acredito totalmente no poder que um livro como esse tem de combater o racismo e o machismo. Digo isso porque a escola não nos ensina nada sobre as lutas e conquistas das mulheres e das pessoas negras como um todo. Não temos contato com a história do continente africano, dos seus muitos países, reinos, batalhas pela democracia, por direitos humanos, entre tantas outras, e isso faz com que pensemos – mesmo que de forma não consciente – que mulheres e pessoas negras não tiveram participação nas conquistas da humanidade. Essa mentira gera racismo e machismo, porque coloca esses grupos em uma posição de irrelevância e inferioridade intelectual.

Se só aprendemos que pessoas negras foram escravas e que não lutaram contra a escravidão, que tipo de lógica se enraíza em nossa mente? Por isso que conhecer essas heroínas é tão urgente, tão impactante. Nas histórias delas, vemos a luta, a inteligência, a estratégia, a força física, a resistência psicológica e inúmeras outras qualidades e talentos que marcaram o Brasil, a literatura, a luta por direitos e etc. Vejo que isso faz diferença, recebo depoimentos de pessoas surpresas e emocionadas, o que mais ouço é “nunca parei para pensar nisso” e “nunca imaginei que isso tinha acontecido”.

Centro de Referências em Educação Integral: No espaço escolar e, portanto, na historiografia oficial, a figura histórica do negro ainda está restrita ao contexto da escravidão? E qual a leitura que você faz da representação hegemônica da mulher negra na literatura brasileira?

Jarid Arraes: Nas escolas ainda se apresenta pessoas negras como personagens passivos diante da escravidão e que tem seus papéis na história limitados a isso. Lembro que aprendi uma grande mentira na escola: que os índios não se conformavam e não se adaptavam a escravidão e por isso acabaram mortos, mas os negros ficavam passivos e aceitavam a escravidão. Só adulta descobri que os quilombos e grupos que agitavam revoltas eram muitos e foram muito além do quilombo de Palmares. As lideranças foram muitas outras além de Zumbi, incluindo grandes mulheres como Tereza de Benguela, Maria Felipa, Mariana Crioula, todas presentes no livro.

Já passou, e muito, da hora de aprendermos quem foram as grandes lideranças negras do Brasil e do mundo, as pessoas que descobriram coisas, que foram e são grandes cientistas, arquitetos, artistas, políticos. Existem muitas, sempre existiram, mesmo quando a segregação racial era legal, quando a escravidão era aceita pelo Estado. Quando encararmos as mulheres negras e as pessoas negras no geral como um grupo formado por gente diversa e que participou (e participa) ativa e positivamente da História, aí começamos a destruir o racismo.

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Centro de Referências em Educação Integral: Você conta que, enquanto crescia, seu repertório de escritoras era precário e que tinha no imaginário essa visão do escritor como um homem branco de meia-idade. Chegou, em algum momento, a pensar que não poderia tornar-se uma escritora por conta disso?

Jarid Arraes: Eu cresci lendo muito, principalmente poesia (aí incluo também o cordel), mas eu pegava os livros que estavam disponíveis para mim. Da coleção do meu pai, li muito Drummond, Ferreira Gullar, Leminski e Manuel Bandeira. Nas escolas encontrava os clássicos e literatura de fora do Brasil, como Shakespeare e Edgar Allan Poe. Mas só adulta percebi que tinha lido uma verdadeira chuva de homens, enquanto as mulheres eu podia contar nos dedos de uma mão. E nenhuma delas se parecia muito comigo, com meu contexto de vida e realidade. Claro que isso fez diferença na minha autoconfiança e na minha percepção do que era ser escritora. Na minha cabeça, era algo impossível. E daí que eu gostava de escrever?

Pelo exemplo, eu via que só quem conseguia escrever e publicar eram homens brancos ou, no máximo, mulheres brancas. Quando tive acesso a obras de escritoras negras, muita coisa mudou. Principalmente porque eu já estava refletindo sobre esses problemas todos e questionando o machismo e o racismo do mercado editorial. Foi aí que entendi que eu escrevia, que era, sim, escritora, e que poderia buscar meios para publicar minhas obras sem esperar pela autorização de qualquer suposta autoridade. O cordel teve um papel importante nesse quadro, pois cresci vendo o cordel como uma maneira de publicação independente e autônoma.

Centro de Referências em Educação Integral: O que diria para encorajar as mulheres que escrevem ou desejavam começar a escrever?

Jarid Arraes: Digo sempre que escrevam, que busquem as pessoas que têm apoio para oferecer e que não escutem o machismo e o racismo. Procurem por autoras independentes de quem vocês possam extrair inspiração e encorajamento. Hoje existem muitos movimentos que promovem a literatura feita por mulheres, como o Leia Mulheres e o Mulheres que escrevem. No meu caso, criei o Clube da Escrita Para Mulheres, que tem o objetivo de realizar encontros e oficinas de escrita, mas também de ajudar mulheres que buscam suporte, orientação. Acima de tudo, esqueçam essa ideia de que escrever é um dom. Não é. Escrever é prática, exercício, é frustração e tentativas constantes, porque só assim nossa escrita evolui, só assim a gente encontra a nossa voz literária.

Centro de Referências em Educação Integral: Como a escola pode contribuir para o debate do feminismo, movimento negro, LGBT? Qual a importância dessas pautas estarem presentes na educação dos indivíduos para umdesenvolvimento integral?

Jarid Arraes: Pelo exemplo, vejo que educadores podem fazer muita diferença quando selecionam material que aborda esse temas. Livros que têm protagonistas negros ou LGBT, histórias protagonizadas e escritas por mulheres. Claro que muita coisa dependente da escola como um todo, não dos professores individualmente, pois os educadores precisam de formação de qualidade para que saibam inserir essas questões, para que abordem história africana e etc. É um quadro complexo, difícil, mas acredito nos exemplos inspiradores. Sei que um só professor já é capaz de fazer muita diferença e causar um impacto muito positivo na vida dos estudantes, tive professores que fizeram esse papel na minha vida e hoje escrevo coisas que alcançam muitas pessoas. Então sou otimista nesse sentido, acho que podemos construir, juntos, cada um de sua forma, um caminho que nos leva a uma sociedade com equidade.

Fonte: Educação Integral. 

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