Retrospectiva: A educação apressada do capitalismo e do autoritarismo

O governo que o eleitorado brasileiro instalou em Brasília é uma notícia ruim para a educação do país. Sobre esse assunto essencial para o desenvolvimento humano e profissional do Brasil refletiu, em texto do dia 27 de fevereiro de 2019, a doutora em filosofia, Evânia Reich. 

“O ano letivo acaba de começar em todo o Brasil, os egressos dos cursos universitários iniciam suas trajetórias de formação, e os secundaristas começam a se preparar para o grande desafio que é o vestibular. Concomitantemente um novo governo inicia sua trajetória, e infelizmente para quem se dedica a estudar a educação e os métodos pedagógicos, ou para quem é professor ou pesquisador, as notícias não são boas. Uma avalanche de propostas conservadoras, descabidas e grotescas são lançadas por um governo que apenas começou. E a semana começa com uma carta do ministro da Educação enviado ao MEC para que todas as escolas iniciem suas atividades diárias cantando o hino nacional e repetindo o slogan de campanha do presidente eleito. A que ponto chegamos!

Por Evânia Reich, para Desacato.info.

Desde Platão, Sócrates, passando pelos modernos, como Kant, Rousseau, Nietzsche, até chegarmos aos contemporâneos, como Adorno, houve uma preocupação comum que diz respeito a existência de uma crise no processo de formação do homem. Cada época teve sua crise educacional, e a filosofia com certeza nos ajuda a pensar que tipo de crise é esta pela qual estamos passamos.

Embora ainda exista hoje um discurso sobre a educação que pensa sua finalidade como aquela que objetiva a formação de seres humanos autônomos e responsáveis socialmente, uma educação que almeja um sujeito consciente de si, responsável de si, mas também da sociedade, sujeito refletido e concernido com seu entorno, há também um outro completamente diferente que pensa a educação orientada através de fins externos, utilitaristas, tais como a empregabilidade, o sucesso pessoal, a conformação às exigências do mercado, e assim por diante. Parece haver uma fissura irremediável entre estes dois tipos de discursos, e que na prática o propósito da educação vem se revelando muito mais alinhado ao segundo discurso, do que ao primeiro.

Adorno já dizia em Educação e Emancipação que a educação não é necessariamente um fator de emancipação. Esta afirmação bastante pessimista, que percorre praticamente todos os seus escritos, quer nos alertar contra os efeitos negativos de uma educação que está à mercê da racionalidade produtivista. É preciso mais do que nunca libertar a educação das presas do capitalismo totalizante, onde educação passa a ser mais um produto a ser comercializado. E como produto a consequência é devastadora sobre dois aspectos. Primeiro porque limita o seu acesso à uma grande parcela pobre da população. E em segundo lugar, porque como mercadoria, ela acaba tendo unicamente como finalidade o lucro. A formação cultural e humana é substituída pelo lucro e pelo sucesso.

Sabemos muito bem que no Brasil o pobre e o negro sempre foram excluídos das universidades ou daqueles cursos que formam a elite socioeconômica brasileira. Alguns programas de inserção no governo do PT ainda conseguiram reverter parte desta situação. Mas o atual governo não tem nenhum interesse em inserir o pobre em instituições educacionais de qualidade, tampouco fomentar o crescimento do número de universidades ou institutos federais, como ocorreu nos anos Lula/Dilma. O projeto educacional do governo Bolsonaro deixa claro que uma formação universitária não é necessária e que a educação tem apenas a finalidade de produção de mão-de-obra. Vélez-Rodriguez, ministro da Educação, nem tinha assumido o seu posto e já havia declarado: “O aluno tem que sair do segundo grau pronto para o mercado do trabalho. Nem todo mundo quer fazer universidade. É bobagem pensar na democratização da universidade”. Grotescamente afirma que a grande prova que a universidade é desnecessária são os “youtubers”, que ganham dinheiro sem ter passado pelos bancos universitários.

O descaso e o desprezo para com o ensino universitário, tão latente no governo Bolsonaro, é história que se repete. Governos autoritários nunca quiseram um povo culto. Coincidentemente a lógica neoliberal do capitalismo permeia governos autoritários: a educação serve unicamente à produção de lucro e reprodução do mundo do trabalho, e jamais à formação de intelectuais. Ambos odeiam os intelectuais. A cultura só serve quando dá lucro.

O acesso à universidade não é o único problema que temos na educação brasileira. Parece-nos que se olharmos para o tipo de educação que é dispensada aos nossos jovens de ensino médio, constatamos que ela tem uma única preocupação: o aprendizado de um conhecimento voltado ao exame do vestibular – para aqueles que podem continuar estudando – ou senão para a formação técnica de uma profissão. Não existe uma preocupação para com o despertar de uma educação que cumpra o seu papel de formadora dos homens e mulheres, enquanto seres éticos, políticos e morais, responsáveis com sua cidade, seu entorno e seu país. Muito menos uma educação com a preocupação de iniciar uma tarefa que tem o intuito de perpetuar no espírito dos alunos como algo que deve continuar pelo resto da vida. Esquecemos que uma educação deve ser pensada como um processo ao longo da vida, que persiste juntamente com a vida profissional do ser humano. Perdemos isso porque a finalidade da educação parece encerrar o seu papel com a distribuição de seus diplomas, e a capacitação para um saber especializado. Provavelmente isto acontece porque a educação na escola não deixa marcas para um aprendizado contínuo no futuro, não deixa o desejo de um aperfeiçoamento no tempo. Quando isto ocorre, ele se dá apenas no interior de um saber específico de uma profissão, mas nunca voltado para a formação do homem enquanto ser moral e político, ou do intelectual culto, mas concernido com os problemas de sua época e da sociedade.

Voltando a Adorno, a sua preocupação não é apenas com a realidade social do presente que escraviza a educação. O filósofo que escreve durante o período da Segunda Guerra Mundial está preocupado com o retorno da barbárie. Ambas as preocupação estão imbricadas uma na outra. Para ele resta claro que é urgente descobrir alternativas para interromper a barbárie e buscar a realização da emancipação do homem. A meta da educação é fazer com que não haja mais Auschwitz, não haja mais barbárie. As possibilidades de mudar os pressupostos que geraram Auschwitz encontram-se nos fatores políticos e sociais. E neste sentido, a educação se torna imprescindível para promover reflexões e questionamentos sobre o passado e um presente que se veem ainda ameaçados por este mesmo fantasma. Para Adorno, o único poder efetivo contra a repetição de Auschwitz é a conquista da autonomia pelo educando e a autodeterminação de não participar da barbárie. Para o filósofo alemão, a educação de sua época era impotente para realizar o conteúdo emancipatório do movimento da razão porque estava vinculada a uma determinada formação social focalizada apenas no mundo do trabalho e da produção. A crise do processo formativo e educacional é uma conclusão inevitável da dinâmica atual do processo produtivo. Nem o desenvolvimento científico é garantia de emancipação, nem a educação o é. E o nazismo constituiu o exemplo acabado do componente de dominação da educação, o qual foi o resultado não acidental do processo de desenvolvimento da sociedade em suas bases materiais.

É preciso ler Adorno! Adorno é mais do que atual. Com ele é premente pensar em uma educação que reflita a respeito dos perigos do retorno de uma barbárie, tão ameaçadora em nossas sociedades contemporâneas. É necessário nos perguntar se a educação suscita nos estudantes a questão tão atual sobre as renovadas formas de autoritarismo e totalitarismo. O nosso sistema educacional prepara seus alunos para ir ao encontro de grupos diferentes, que não seguem as convenções da sociedade, como por exemplo, as minorias, as subculturas, os usuários de droga, tão banalizados e ao mesmo tempo jogados às margens das nossas cidades, como lixos que devem ser evitados? Como a educação trabalha com as questões de gêneros? Como lidar com as questões religiosas, o respeito com as religiões, mas também o enfrentamento dos seus males e de suas formas de dominação? Enfim, estamos prontos para viver em um mundo que exige cada vez mais uma tolerância para com a diversidade, mas que ao mesmo tempo borbulha no ódio pelo diferente? Desejamos a ordem, a orientação, a segurança, os quais nos levam a optar por soluções autoritárias ou queremos compreender a diversidade, o outro?

Estas são questões que nos parecem essenciais no contexto de uma educação que está preocupada com o mundo que está para além de seus muros escolares. Por isso a importância em se pensar uma educação voltada à formação de jovens concernidos com esses problemas. É necessário guardar em mente que a educação acontece dentro de uma dialética entre indivíduos e as demandas da sociedade. Educação significa uma balança entre esses dois interesses. A mera conexão de interesses hegemônicos é absolutamente impossível em um mundo de contradições – e isto a filosofia de Adorno nos relembra incessantemente – mas, igualmente a ideia de uma independência absoluta dos indivíduos é impossível. A autonomia pessoal é sempre conectada socialmente e ocorre dentro de uma sociedade em construção. Por isso, quando Adorno não acredita apenas na educação como formadora de indivíduos autônomos, isso significa que há uma dependência inexorável das condições sociais existente com a formação desta autonomia. E.R.”

Evânia E. Reich é doutora em Filosofia pela UFSC – Pesquisa do pós-doutorado em Filosofia Política pela UFSC.

 

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