A desumanização do Jeca Tatu. Por Edna Garcia Maciel.

Os Retirantes. Candido Portinari, 1944

Por Edna Garcia Maciel, para Desacato.info.

Desde os primórdios do século passado, há uma crença generalizada de que a pobreza, o analfabetismo, a superstição e a ignorância da população brasileira constituem uma indesejável herança do colonialismo. De acordo com essa formulação, o Brasil deveria evoluir, isto é, percorrer fases que iriam de uma incipiente industrialização até chegar a uma plena industrialização e, nesta condição, tornar-se o paraíso da classe trabalhadora. Monteiro Lobato (1882-1948) é um exemplar formidável dessa concepção. Por volta de 1918, ele viaja para os Estados Unidos e fica completamente seduzido pelas maravilhas do capitalismo. Ao comparar os enormes arranha-céus com as casas de pau a pique e choças dos “jeca tatus”, que vivem do próprio trabalho em suas rocinhas, Monteiro Lobato não se conforma. A seu ver, os caipiras descalços, maltrapilhos e infestados de vermes não têm ambição alguma. São indolentes que se contentam em vegetar de cócoras” na miséria e são, sobretudo, preguiçosos. Então, ele se torna um defensor ardoroso do progresso brasileiro – da industrialização -, apreendido como sinônimo de eliminação do atraso, e, por conseguinte, da necessária dominação do tinhoso jeca-tatu que foge, o quanto pode, do trabalho.

Há um ditado antigo que diz: o inferno está repleto de homens bem-intencionados. Teria sido este o caso de Monteiro Lobato? Acho que não. Os limites de sua formulação sobre a pobreza são os limites do tempo histórico em que viveu esse grande escritor brasileiro. Nada mais.

Uma vez dominado definitivamente o jeca tatu – do qual foi extirpada a possibilidade de viver do seu próprio trabalho -, o Brasil conhece um progresso jamais imaginado, sem, contudo, derrotar o atraso. Ao contrário, de acordo com o sociólogo Francisco Oliveira, ergue-se sobre o atraso e, nesta condição, cria um dos setores mais avançados que coloca o país, em pouco tempo, entre os maiores produtores de alimentos do mundo.

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De nada adiantou ao jeca tatu resistir preguiçosamente ao assalariamento, à modernidade e, enfim, ao progresso. A pobreza dele, nos dias atuais, não provém mais de sua indolência natural. Repentinamente separado de sua terrinha, vegeta no desemprego, em milhares de favelas espalhadas por todo o Brasil, uma derrota da crença dos homens de boa vontade, daqueles que, como Lobato, acreditavam que a riqueza criada pelo trabalho assalariado poderia ser apropriada coletivamente.

A expropriação do jeca tatu corresponde à concentração dos meios produtivos e, por conseguinte, da apropriação individual da riqueza. As formidáveis máquinas que atualmente substituem o trabalho vivo mostram que o próprio trabalho vai se tornando cada vez mais supérfluo e assim também o trabalhador. Separados da possibilidade de se reproduzirem pelo assalariamento, os descendentes do jeca tatu, os operários da era digital, são compelidos ao desemprego. É que as colossais forças produtivas capitalistas se tornam, a um certo grau de seu desenvolvimento, forças destrutivas para a grande maioria da população e, desse modo, é obrigada a suportar toda a sorte de sofrimentos. Quando o capital faz da barbárie seu modo de ser, quando não mais se sustenta sobre suas próprias pernas, ele se transforma em uma imensa “máquina de destruição generalizada, principalmente da força que o cria e que o mantém: da classe trabalhadora”[1].

A Europa Ocidental mostra ao mundo o que acontece quando uma forma de vida humana se reproduz decadentemente. Neste momento, a vida pode se tornar um absurdo. Quando os homens abrem mão de um futuro de grandeza, eles se animalizam, tal como na peça O Rinoceronte, de 1958, de Eugène Ionesco, genial dramaturgo do século passado. Nela, o autor conta a história de uma cidade em que indivíduos vão se metamorfoseando em bestas, em rinocerontes. Um a um, todos os cidadãos sofrem o processo de animalização: o filósofo, o lógico, o apologista do método científico e da razão, o cético, o indiferente, o burocrático, o político demagogo e os trabalhadores. Aos poucos, os cidadãos perdem a pele lisa, a fala, a humanidade. Mudam seus gostos e ideias. Passam a preferir veterinários ao invés de médicos. Mudam suas concepções de belo. Apreciam, cada vez mais, o grotesco, a força, a brutalidade e o grito – o barrido – dos rinocerontes. No início, pensam que o processo de transformação se deve ao contágio de uma doença: a rinocerontite. Mas, a partir de um certo ponto, a trágica mudança já não é considerada anormal. Todos sucumbem, sem resistir, seduzidos e impotentes diante dessa força estranha. “Resta apenas um herói surpreendente: um sujeito desleixado, negligente, tímido, humilde e generoso que assume o risco de enfrentar o mal, apesar de suas frágeis armas”[2]. Recusa-se a compactuar com a passividade coletiva face ao processo de alienação social. Ele não abre mão de sua condição humana, apesar do perigo. Não se conforma com a tomada de poder dos rinocerontes, mas é ingênuo porque supõe que sozinho pode barrar o processo de destruição da sociedade.

O que move Eugène Ionesco (1909-1994) à criação dessa formidável peça teatral? Sua fábula reflete o movimento histórico. O autor foge para a Romênia quando seu país, a França, é invadida pelo exército nazista. Na Romênia presencia, estarrecido, trabalhadores aderirem à ideologia fascista. Dizem ainda que um amigo de Ionesco, em Nüremberg, teve a oportunidade de assistir a uma impressionante manifestação nazista e, quando o Füher apareceu, a multidão foi tomada por uma histeria coletiva tão contagiosa que seu amigo quase sucumbiu à estranha e terrível magia, ao delírio insano da turba.

A vida de Ionesco não seria a mesma depois desses acontecimentos. Anos depois, ele escreve O Rinoceronte, uma sátira ao autoritarismo, mas também ao vazio existencial herdado da monstruosa Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Faz da representação uma crítica irônica e desconcertante ao conformismo dos que seguem a maioria, pela maioria, por mais irracional que sejam suas ideias. Ergue-se contra a indiferença humana, uma espécie de perversidade dos sonâmbulos[3] que nada fazem mediante os horrores sociais.

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Atualmente, enganam-se aqueles que pensam que os rinocerontes foram domados depois de destruírem grande parte do Velho Continente. Eles apenas se mantinham à espreita, aguardando uma oportunidade para, de novo, se agigantarem. Eles percebem que, no Novo Mundo, o Brasil é o que tem mais terras férteis à sua reprodução em larga escala, então, avançam com seu trote ensurdecedor sobre o território nacional. Porém, para florescerem, precisam de um chefe que os governe. E, assim, para espanto de muitos, elegem algo inominável: o Coiso. A outra parte da sociedade, a que resiste à metamorfose, assiste estarrecida ao execrável ditador, o homem adjetivado – como diria Machado de Assis – ser alçado ao trono. Uma vez entronizado, o títere – o testa de ferro da burguesia – executa impiedosamente uma política de extermínio social, apoiado por desumanizados cúmplices desse reino de terror.

Como sabemos, os rinocerontes são grandes mamíferos de corpo maciço e, atrapalhados, deixam um rastro de destruição por onde passam. São muito feios e amam o grotesco e o vulgar. Governam por meio de decretos e medidas provisórias que engordam os avaros e insaciáveis acumuladores de riquezas. A venalidade é considerada um direito superior a todos os outros porque garante, juridicamente, a venda de qualquer coisa, até da consciência e do voto dos representantes dos rinocerontes. Adoram se refestelar na lama dos escândalos e conluios. Têm olhos pequenos e visão fraca. Como enxergam pouco, não gostam de livros, de professores, de estudantes e, muito menos, da educação pública. Espetam, com seus cornos acerados, os homens da ciência e desmoralizam suas descobertas. Mesmo os mais evoluídos não conseguem dizer mais do que uma frase bem curta. Têm dificuldades em articular as palavras, a não ser as cínicas, caluniosas e de mau gosto. Dizem que, talvez, eles tenham adquirido a cegueira branca, como previra José Saramago. Desse modo, só se comunicam por meio de medíocres, irados e vulgares mugidos em forma de chistes que, rapidamente, viram cânones e se espalham por toda a manada. São especialistas em abrir caminhos, penetrando à força na sociedade. Andam em bandos bem armados e agem coletivamente. Adoram a ditadura e os torturadores. Alardeiam que adorariam metralhar a “esquerdalha”. Seguem uma ideologia selvagem e insana que consiste em perpetuar a pobreza para aumentar a riqueza dos ricos. Dignificam a exploração do trabalho, desde que realizado pelo outro – inclusive o trabalho infantil.

Os rinocerontes também devoram plantas: pesquisas mostram que andam dizimando velozmente a maior floresta tropical do mundo, juntamente dos seus ancestrais habitantes. Vivem empanturrados e, assim, não admitem a fome alheia. Os machos dominantes somente toleram machos submissos em seu território. Os demais, fora do clã, são duramente perseguidos e, às vezes, encarcerados para evitar qualquer baderna. As fêmeas são obedientes, semianalfabetas, submissas, recatadas e do lar. Somente servem para reproduzir. Os rinocerontes marcam seus terrenos com urina e fezes que podem ser medidas em metro. Seu fedor viaja por todo o país. Possuem, ainda, uma caixa craniana pequena, compatível com um cérebro pequeno, tacanho e parvo. Por isso, têm alucinações, principalmente as de natureza política. Vivem à caça de fantasmas, de supostos comunistas ou de quaisquer opositores considerados inimigos da pátria, há pouco por eles usurpada. Seus delírios persecutórios têm servido para justificar a criminalização de movimentos sociais. Possuem uma militância radicalizada e movida pela intolerância, pela estupidez e pela violência. Neste reino animal, foi banida a solidariedade humana, o amor, a candura, a tolerância e a cordialidade, considerados obstáculos graves à nova instituição.

E agora? Novamente, estamos diante do desafio histórico de humanizar a sociedade. Mas, para isso, é necessário fazer um acúmulo de forças. Somente assim poderemos, quem sabe, realizar algo tão velho e, ainda, tão necessário: um ajuste de contas com as forças sociais – os rinocerontes – que impedem o avanço do processo de emancipação da humanidade.

[1] Pedro A. Figueira.

[2] O Rinoceronte, 1976.

[3] Machado de Assis, 1996.

Edna Garcia Maciel é Doutora em Educação.

A opinião do/a autor/a não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

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