A desonra do professor da Udesc

Ator John Malcovich, no cartaz do filme Desonra

Por Manoela de Borba, para Desacato.info.

Na cozinha, ele abre uma garrafa de Meerlust e serve com bolachas e queijo. Na sala, ela olha a estante de livros, a cabeça de lado, lendo os títulos. Na vitrola, o quinteto de clarineta de Mozart. Um ritual de vinho e música. “Nada de errado com os rituais”, observa o narrador, “eles foram inventados para facilitar certas passagens difíceis. Mas a menina que trouxe para casa não é só trinta anos mais nova que ele: é aluna, sua aluna, está sob sua tutela. Aconteça o que acontecer entre eles agora, vão se encontrar de novo como professor e aluna”.

Desonra, do sul-africano J. M. Coetzee, é perturbador ao tratar de uma pauta que atravessa o cotidiano das mulheres. A obra trata de David Lurie, um professor universitário de 52 anos sem escrúpulos nem pudor no tratamento com suas alunas de literatura. Assim li Desonra, no limite entre aquilo que é consentido e aquilo que é violado. Recorri a Coetzee já há alguns meses, quando um caso similar envolvendo um professor da Udesc veio à tona.

A denúncia de um coletivo de alunas envolvendo um professor da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc) parece ter saído daquelas páginas com um aditivo de desfaçatez que só pode ser traduzido à luz da realidade. No caso real, que em fevereiro saiu dos corredores da universidade e foi parar na delegacia, o professor foi acusado de abuso sexual e psicológico por um coletivo de dez mulheres, sendo um caso de estupro e outros nove de assédio sexual.

A narrativa do acusado – seja na ficção ou na realidade -, é sempre a mesma. Houve consentimento no ato sexual, logo não há estupro. Na obra de Coetzee, a aluna não resiste. Tudo o que faz, conta o narrador, é desviar: desvia os lábios, desvia os olhos. Ela fica surpresa demais para resistir ao intruso que impõe sua presença. “Quando ele a pega nos braços, ela fica mole como uma marionete”. Na denúncia do professor da Udesc, a aluna não consente. Uma jovem que bebeu demais e aceitou o convite do professor para dormir em sua casa. Afinal, ele a conhecia desde a infância, era seu professor e uma de suas principais referências acadêmicas.

As denúncias de abuso e assédio sexual, registradas em março logo após a denúncia de estupro, tiveram seu primeiro desfecho nesta terça-feira, 5 de junho. No despacho do delegado Paulo Henrique de Deus, da Delegacia de Proteção à Criança, ao Adolescente, à Mulher e ao Idoso, o professor da Udesc foi indiciado por perturbação da tranquilidade, crime que prevê pena de prisão simples, de 15 dias a dois meses, e pagamento de multa. O processo segue agora para análise do Ministério Público de Santa Catarina e caberá a decisão do promotor aceitar a denúncia, pedir novas diligências ou alterar o indiciamento. Já a acusação de estupro segue tramitando em Palhoça.

Às vezes a literatura não dá conta de traduzir o cotidiano. Na obra de Coetzee, o leitor acompanha a decadência de David Lurie. Acusado de assédio e afastado do emprego na Universidade da Cidade do Cabo, o professor se vê repentinamente obrigado a defender a honra de Lucy, sua única filha que vive numa fazenda isolada no interior do país. Lucy é violada e estuprada em casa por três homens e o professor então se dedica a convencer a filha a denunciar o crime, ao que ela nega. Lucy engravida do violador e o estupro da filha parece o único elemento da trama capaz de tocar o professor, que quer vingança e deseja a morte do violador. Ainda assim, o protagonista se mostra incapaz de refletir sobre o seu assédio e as relações de poder. Afinal, ele é um professor de 52 anos, reconhecido pesquisador de literatura, rodeado de alunos pouco interessados e sensível aos prazeres do sexo oposto. Lurie é um homem de família.

Manoela de Borba é jornalista e mestranda em jornalismo pela Universidad Nacional de La Plata (UNLP), Argentina.

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