A desigualdade social no Brasil imposta pelos dominantes e aceita pelos dominados

Foto: Fernando Frazão/ Agência Brasil

Entrevista com Alessandro Pinzani. Professor de filosofia política da UFSC.

Por Evânia Reich, para Desacato.info.

  1. Você tem trabalhado com a questão do sofrimento social na filosofia, e em um de seus trabalhos você fala de doutrinas totalizantes que causariam sofrimento aos indivíduos, que você chama de sofrimento sistêmico. Poderia explicar esses dois conceitos?

O sofrimento social pode ser chamado assim por duas razões: porque suas causas são sociais e porque é o sofrimento de um grupo social (como no caso do sofrimento de negros ou homossexuais provocado pelo racismo ou pela homofobia). É sistêmico quando as causas sociais não dependem unicamente do comportamento de certos atores sociais (como quando, por ex., os representantes de uma instituição discriminam ou violam os direitos de um grupo social), mas se encontram na própria estrutura social, isto é, na maneira em que a sociedade está organizada e em que o poder (social, político, econômico, epistêmico etc.) está distribuído nela. Quando esta estrutura que provoca sofrimento se perpetua ao longo do tempo, apesar de sofrer mudanças parciais (por ex. na distribuição do poder entre grupos sociais), podemos falar de sofrimento sistêmico. Este é o caso, por exemplo, dos pobres no Brasil: sua pobreza tem raízes profundas que remetem ao tempo da colônia e da escravidão. A Lei Áurea de 1888 representa uma mudança social que, de fato, não modificou muito a situação dos agora ex-escravos e os deixou numa situação de abandono institucional e de extrema indigência, pois não foi acompanhada por uma redistribuição dos recursos e por uma política de inserção cidadã (a inserção econômica, pelo contrário, continuou na forma de trabalhos precários, pesados e mal pagos e da dependência material da “benevolência” dos coronéis). Não é possível entender a pobreza no Brasil atual sem considerar suas causas históricas, bem como sua relação com a distribuição do poder (não somente daquele econômico) na sociedade brasileira ao longo da história do país.

Ora, o que chama a atenção é o fato de que esta situação tenha sido aceitada (e ainda o seja) quase sem revolta por parte das próprias vítimas, isto é, pelos pobres. Isso não pode ser explicado somente apontando para a repressão violenta de qualquer revolta por parte do Estado e de suas instituições. Cabe antes buscar uma explicação que leve em conta também o discurso dominante sobre a pobreza e suas causas – discurso que tende a considerar a pobreza como um problema individual e, portanto, a responsabilizar pela sua condição os indivíduos pobres. Tal discurso se insere no contexto mais amplo de um conjunto de convicções sobre o mundo social, de valores e de normas e práticas sociais fundamentadas em tais convicções e valores. Esse conjunto eu denomino de doutrina totalizante quando pretende explicar e regulamentar todo e qualquer aspecto da vida social e individual. As religiões são um bom exemplo, mas também o são o neoliberalismo ou o próprio liberalismo clássico. No caso do Brasil, temos uma mistura de elementos liberais (mais recentemente, neo-liberais) e de uma visão tradicional centrada nas relações de dependência pessoal e na convicção de que existe naturalmente uma hierarquia social imutável. O resultado é não somente a naturalização da pobreza e da desigualdade que a provoca, mas sua aceitação como conseqüência da incapacidade pessoal dos pobres de saírem de sua condição. Isso pode explicar porque no primeiro turno das eleições, bem como na eleição para governos estaduais e para deputados e senadores estaduais e federais os membros de grupos sociais que são prejudicados pelo status quo (que são, então, vitimas de sofrimento sistêmico) acabaram votando em candidatos que defendem o status quo.

  1. Você fala que as doutrinas totalizantes em uma sociedade podem provocar conflitos internos e levar até a desagregação e ao colapso da sociedade. Você imagina um quadro desse tipo para a sociedade brasileira, na atual conjuntura?

Não vejo um risco de desagregação na sociedade brasileira. Há conflito, há o risco inclusive de explosões de violência que podem até ser extensas e extremas, mas a sociedade brasileira pode sobreviver a isso, assim como ela sobreviveu por séculos ao fato de que uma parcela relevante da população passava fome e ficava às margens do corpo político e social. A maioria dos brasileiros parece compartilhar a doutrina totalizante mencionada acima e considerar não somente natural, mas justo que existam fortes desigualdades econômicas e sociais e que o poder seja distribuído conforme tais diferenças de posição. Bolsonaro representa esta doutrina de forma extrema, mas ele é o espelho de uma visão de mundo e de valores amplamente compartilhados no interior da sociedade brasileira, em todas as classes. É um sintoma, não a própria doença, por assim dizer.  Seu discurso leva às últimas consequências ideias e políticas que já foram formuladas e implementadas por outros políticos de direita: pensemos na impunidade da violência policial em muitos estados, nas privatizações selvagens, nos cortes brutais em serviços essenciais como saúde ou educação, entre outros, e na maneira em que tais políticas foram aceitas pela maioria da população, apesar de importantes fenômenos de revolta (como a ocupação das escolas em São Paulo, que, contudo, não impediu o enésimo triunfo eleitoral do PSDB na cidade e no estado).

  1. Estamos presenciando no Brasil (mas não somente) a escolha de um presidente cujo projeto de governo é extremamente danoso para a mesma parcela da população que provavelmente o elegerá, a classe média brasileira. A partir deste conceito que você usa, “doutrina totalizante”, seria possível explicar esse fenômeno?

Neste caso específico, temo que a explicação tenha a ver mais com a “ignorância” dos eleitores, isto é, com o fato de que pouquíssimos entre eles tomaram conhecimento concreto do programa do candidato e entenderam suas conseqüências. Geralmente, se limitam a apoiar os pontos que consideram positivos, sem sequer refletir sobre sua implementação concreta ou sobre os possíveis aspetos negativos (armar todo mundo pode levar a um aumento da violência em vez de uma diminuição, por ex.). Muitos votam em Bolsonaro porque ele promete combater a corrupção e a violência, poucos se perguntam como isso vai acontecer e como isso vai influenciar suas vidas. Outros votam nele pensando exclusivamente em seus interesses, como no caso das áreas amazônicas (da Rondônia, por ex.), onde seu programa de redução dos vínculos ambientais fez com que ele recebesse forte apoio por parte de quem aproveita da destruição da floresta (proprietários como lavradores). Em suma, não devemos pensar que todos seus eleitores compartilhem totalmente suas ideias e seus valores, embora isso não os justifique ou não os torne menos responsáveis por sua decisão de votar nele.

  1. Por ultimo, você considera que a educação pública no Brasil estaria ameaçada caso Jair Bolsonaro seja eleito?

Com certeza, se levarmos a sério as declarações de seus assessores sobre o assunto (ele mesmo não se pronunciou sobre o tema: em geral não se pronunciou sobre quase nenhum tema e preferiu fugir dos debates, deixando que falassem seus assessores; até o Mourão foi mais loquaz, ainda que nem sempre de forma a favorecer o próprio Bolsonaro). Na visão do candidato e de seus assessores, a escola e a universidade deveriam unicamente preparar os alunos para sua inserção na vida econômica; a educação se reduz à mera formação profissional, sem que haja necessidade de desenvolver outros interesses ou outras habilidades que as necessárias para trabalhar ou para tornar-se empreendedor; em particular, a universidade deveria servir unicamente a produzir um saber imediatamente aplicável na prática econômica (patentes, fundamentalmente).  Isso vai contra tudo o que a universidade foi se tornando ao longo dos séculos, a saber, não somente um lugar de produção de saber, mas também um lugar onde se forma a consciência crítica da sociedade. Deste ponto de vista, não há inimigo pior para quem compartilhe a visão de mundo e os valores de Bolsonaro, mas também de Alckmin, de Doria, da bancada ruralista, da bancada evangélica etc. O pensamento crítico incomoda todos estes políticos que, ironicamente, não perdem ocasião para atacar os governos de Cuba e da Venezuela por oprimir seus críticos.

Evânia E. Reich é doutora em Filosofia pela UFSC – Pesquisa do pós-doutorado em Filosofia Política pela UFSC.

 

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