A demarcação de terras e a injustiça contra os invisíveis

Por Lidiane Ramos Leal, para Desacato.info.

No sul de Palhoça/SC, o processo de demarcação de terras que teve início em 1993 tem como propósito transformar em terra indígena 20 milhões de metros quadrados. O processo é fortemente questionado por moradores de todo o Sul de Palhoça. E claro, principalmente por essas 77 famílias da Enseada do Brito, Maciambu Pequeno e Praia de Araçatuba, que tendem a ser brutalmente arrancadas de suas vidas, em prol de uma irresponsabilidade do Estado. Os estudos antropológicos que identificaram a região como terra tradicional indígena gerou indignação e levou os moradores a entrar com recurso, desde 2009 na Vara Ambiental da Justiça Federal em Florianópolis, ainda sem respostas.

Tivemos a oportunidade de conhecer algumas pessoas que fazem parte desse processo, pessoas nativas e algumas representando sua quinta geração, conforme nos informaram.

Para além de arrancar as casas, estarão arrancando a história dessa família, desumanamente.

Isabel Alecina da Silva, 75 anos, moradora nativa de Araçatuba, a dona Belinha como é conhecida em sua comunidade, afirma que “foi meu pai que deixou essa terra para minha família. Eu tenho cinco filhos e seis netos que moram aqui, estão todos sofrendo muito com tudo isso. O que eles querem fazer com a gente é uma tristeza. Mesmo se eles pagarem a casa, onde é que eu vou morar? Eles não vão pagar pelo terreno, só pela casinha. A minha casa estava quase caindo, agora, meus filhos e genros fizeram uma vaquinha e me ajudaram a arrumar esse puxadinho. Com esse nervosismo, minha pressão aumenta, já passei mal muitas vezes depois que a gente soube disso. Índio aqui eu fui conhecer deve fazer uns 40 anos, quando eles vieram para o Morro dos Cavalos, não é na aldeia de hoje, é perto dali”.

 

 

 

José Adílio da Silva, 53 anos, nativo de Araçatuba, filho de dona Belinha, “eu vivo da pesca, nem penso como será minha vida se eu precisar sair daqui, a minha vida toda foi aqui. A pessoa quando é rica sabe que vai sair de um lugar e ter outro para morar, nós não.”

Valdete Isabel da Silva Santos, 48 anos, nativa de Araçatuba, filha de dona Belinha, “Não tem preço que pague a nossa saída daqui, eu acho um absurdo querer tirar a gente daqui. A vida do meu filho é a pesca, como vamos sobreviver? Ele não tem outra profissão”.

Y. S. P. , 6 anos, “eu gosto de morar aqui, não quero ir embora, porque tem a vovó Belinha, daí eu não posso sair daqui”.

Na Praia de Araçatuba, a luta continua

Maria das Neves Rodrigues, 57 anos, moradora da Praia de Araçatuba, “colocaram no Diário Oficial que a gente usou de má fé, mas eu tenho documentos, eu paguei. Lei para pobre não tem, porque se tivesse não fariam isso”.

Pescadores em dívida com o Pronaf, ou seria o Estado em dívida com os pescadores?

Conforme o Portal do Ministério da Agricultura esclarece, o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) financia projetos individuais ou coletivos. Os financiamentos para pescadores são de até R$ 100 mil anuais e com prazo de 10 anos para pagamento, sendo 3 anos de carência e com juros de 2% ao ano. Os financiamentos aos pescadores tem como propósito auxiliar na aquisição de redes, tarrafas, modernização e reforma de embarcações, o que inclui melhorias nas condições de manipulação e conservação do pescado a bordo e melhorias nas condições de saúde e segurança do trabalhador. Serão concedidos também financiamentos para finalização de construção de embarcações, desde que possuam Permissão Prévia de Pesca; substituição de embarcação, conforme as normas da Secretaria Especial de Aquicultura e Pesca. Os beneficiários do Pronaf Mais Alimentos deverão estar registrados no Registro Geral da Pesca da Secretaria Especial de Aqüicultura e Pesca (SEAP).

Cleusa Terezinha Farias, 53 anos, moradora da Praia de Araçatuba, “Eu trabalho com meu filho na pesca e na maricultura. Se tava nesse rolo todo, por que fizeram um empréstimo do Pronaf para o meu filho? Ele deve R$ 15 mil de empréstimo, se não tiver trabalhando na pesca que é a profissão dele, o que vai fazer para pagar? Meu filho entrou até em depressão por causa dessa situação. Está todo mundo ficando doente, só estou dormindo a base de calmante. Para nós não interessa indenização nenhuma, só quero sair daqui se for para o cemitério”.

 

Conforme relato de Manoel Apolinário, 60 anos, e sua esposa Ivone Martins Apolinário, 55 anos, o casal vive há cerca de 40 anos na Praia de Araçatuba, “nós criamos nossos dois filhos vendendo berbigão, marisco e peixe. E agora temos a preocupação de pagar o empréstimo do Pronaf.” O senhor Manoel faz um importante questionamento e imediatamente sugere a resposta, “nós sobrevivemos e pagamos o empréstimo do Pronaf com o dinheiro que vem da venda do marisco, do berbigão, do peixe, se eu não trabalhar no mar, quem vai me dar emprego com 60 anos? Ninguém!”.

O casal Apolinário, nos solicita ainda que seja mostrada a forma com que a saúde pública do município de Palhoça atende essa região, “faz uma foto da minha perna, e mostra como somos atendidos aqui pela saúde, estou com esse nódulo e há mais de um ano espero atendimento com um especialista, lá no Posto da Passagem do Maciambu” e completa, “e agora mais essa injustiça, ter que sair daqui e ainda doente”.

Vilmar Joaquim de Souza (48), nativo da Praia de Araçatuba, nos conta brevemente sua história e sua aflição “Meu avô Bernadino Onofre dos Passos e meu pai Joaquim Miguel de Souza, ambos falecidos, moravam aqui e eram pescadores. Isso que querem fazer está errado, querem indenizar por uma mixaria e mesmo se compensasse eu não sairia daqui”.

Fabiano Sabino da Silva, 32 anos, pescador, nativo da Praia de Araçatuba, “meus pais Sabino e Benta também são pescadores, sobrevivo com minha esposa Maria de Fátima Boeira da Silva de 41 anos, da pesca e do marisco, minha esposa, inclusive é descendente de índio, dos primeiros índios que vieram para o Morro dos Cavalos da família Moreira. Nós não queremos sair daqui, nossa vida é a pesca, é a única profissão que a gente tem. Temos dois empréstimos do Pronaf para pagar e temos que pagar. Sustentamos dois filhos com o dinheiro da pesca. A gente tem botes, marisqueira, redes de pesca, bateira pra onde vou levar tudo isso?”.

Valmor Bertino Ventura, 58 anos, pescador, nativo da Praia de Araçatuba, “minha avó morou 105 anos aqui, no mesmo lugar. Sair daqui pra mim é um absurdo, não pode, nós vivemos aqui toda vida, sobrevivo da pesca e do marisco”.

Ilda Arminda de Souza, 70 anos, esposa do senhor Valmor B. Ventura, nativa da Praia de Araçatuba, “sempre trabalhei com meu marido na pesca e não quero sair daqui”.

Bernardino Joaquim de Souza, 49 anos, pescador, nativo da Praia de Araçatuba, “represento a quinta geração de pescadores. Toda a minha família depende da pesca, sobrevivemos disso, é a nossa atividade. Não quero sair daqui para nenhum outro lugar. Onde querem colocar esse pessoal todo, com embarcação e tudo?”.

Izabel Deobrandina Campos, 56 anos e seu esposo Luiz Carlos Pavanato, 53 anos, pescador e maricultor, nativo da Praia de Araçatuba, dona Izabel nos afirma, “pra nós isso foi uma surpresa carregada de tristeza. Por que o pescador tem que sair daqui se a terra é da marinha? Nós temos todos os equipamentos de maricultura, no asfalto não dá pra pescar. E ainda eles querem nos indenizar só pela construção. Eu tenho os documentos comprovando que isso aqui é meu. Esses terrenos nos estudos dos antropólogos estão como planície, mas é só olhar pra ver que não é. Eu tenho pena dos índios porque aqui eles não vão plantar nada, é só pedra e morro, é uma tristeza botar eles aqui. Pra que gastar dinheiro para tirar a vida dessas pessoas daqui? Deveriam investir em saúde e educação e dar um lugar bom para os índios onde não tenha gente morando. Nós pagamos impostos da marinha. Nós procuramos em 2002 na Celesc* para ligar a luz, mas até hoje não ligaram. Eu sou uma pessoa em tratamento pelo Cepon, tive câncer de mama, e preciso que liguem a minha luz. E agora ainda tenho que me preocupar porque querem me tirar daqui. Eu vivi aqui, criei meus filhos aqui, tenho uma história aqui e não quero ir embora, não tem preço”.

 * Centrais Elétricas de Santa Catarina S.A. – Celesc

A quem a Funai (Fundação Nacional do Índio) está servindo?

No km 227 da Br 101 na Praia de Fora, em Palhoça, encontramos 41 índios nhandéva vivendo em situação precária em ocas feitas de lona plástica e ignorados pela Funai. Entre eles Milton Moreira, 52 anos, nos esclarece, “sou filho de Júlio Moreira, meu pai foi o primeiro índio a chegar na região do Morro dos Cavalos, chegou comigo e minhas irmãs. Eu sou contra a demarcação de terras, porque nós não precisamos de quase 2 mil hectares de terra, é muita coisa, o índio precisa de um espaço pequeno para plantar, de onde vão trazer índios para preencher essa terra? Todo o processo feito pela Funai corre em meu nome, mas como pode acontecer isso se eu sou contra essa demarcação? Nós sempre vivemos bem com os moradores dessa região e agora querem fazer essa briga entre nós, tem algum interesse por traz. Aqui nós temos 28 crianças e adolescentes sem ir a escola e a Funai não faz nada”.

Rosalina Moreira, 60 anos, atualmente é moradora do bairro Praia de Fora, em Palhoça, “meu pai Julio Moreira foi o primeiro índio a vir morar aqui, a gente morava em uma barraca de lona lá perto da aldeia do Morro dos Cavalos, o pai veio comigo, meu irmão e minhas irmãs Lurdinha e Nadir. Somos contra essa demarcação, quem vive lá na aldeia do Morro dos Cavalos são mestiços, vindos de toda parte, foram trazidos pela Funai para fazer essa demarcação de terras ”.

Algumas pessoas alegam que as terras brasileiras eram indígenas, pois sabemos, e inclusive sou uma questionadora do processo de exploração. No entanto, devemos ter sensibilidade com essas pessoas que não tem culpa de viverem em um país que foi explorado por portugueses. É preciso deixar claro que a luta não é contra os índios e nem teria razão para isso, e sim contra as instituições representativas do Estado, ou não, que estão agindo sem responsabilidade para com essas 77 famílias, que percebemos que estão longe de serem tratadas como gente, algumas descendentes de índios, inclusive. E esse ataque é também contra os índios, já que se trata de uma área de morros e pedras, o que deve ser difícil para cultivar qualquer tipo de plantação.

Fotos: Lidiane Ramos Leal.

13 COMENTÁRIOS

  1. Lidiane, fiquei maravilhado pelo tamanho e profundidade da reportagem em que vc elaborou, a gama de informação em que vc conseguiu colher dessa tão simples gente, mostrase com muita simplisidade de palavras em seus textos uma situação comovente ,corrompida e desumana por um angulo nunca antes mostrado por qualquer outro meio de comunicação em nossa região.

  2. Lidiane meus Parabéns pelo excelente relato de nossas comunidades É Senhora Ana J ,agora escreveu muito bem em português né ,invasores ,são aqueles que chegaram em 1994 , implantados pela Funai ,e ainda usam a Família Moreira ,sendo que eles sim são os donos da verdade ,e falam que chegaram ali por volta de 1970 ,e nós que enterramos nós antepassados a mais de 3 seculos ,que somos os invasores , não me faça rir ,kkkkkkk SENHORA ANA J ,Argentina .

  3. Em primeiro lugar sou o legitimo guarani do morro dos cavalos nasci em 1983, sou da familia Moreira,quando tive uns 7 anos fui morar no Maciambu Pequeno,onde estudei na escola municipal.Por isso que sou a favor dos não indio que são pessoas boas que não merecem sair de suas terras.O que me deixa indignado é que os mestiços tem casas de alvenaria e a minha é barraca.Os índios são recentes chegaram em 94,como pode isso acontecer meu deus do céu!tiveram direito de tudo e nós dos moreira nada.Mas um dia o sol iluminará o nosso caminho.

  4. Os moradores estão fazendo drama, mas agiram de má fé. já sabiam que a terra era dos indios e mesmo assim se sentiram no direito de invadir. mesmo que isso tenha acontecido a varios anos, nao muda o fato de serem invasores!!
    agora começam a fazer denuncias sem embasamento dizendo que a funai tá ameaçando eles, só pode ser piada né, a funai não precisa ameaçar ninguem pois a justiça está do lado dela.

  5. Nasci e morei sempre no canto da Enseada de Brito, conheço e muito bem a historia dos índios do morro dos cavalos. Eles chegaram depois que a BR 101 passou, mais ou menos em 1970, e sempre conviveram em paz com todos dessa região. O que me causa estranheza é que viviam abandonados sem assistência do Estado, mas depois que começou a duplicação da BR 101, começou também o Estado a se preocupar com eles, inclusive, construindo uma escola a mais ou menos 20 metros da pista, sem nenhuma proteção pra aquelas crianças e sem contar o barulho dos veículos, e também a demarcar terras de nativos pescadores para começar o conflito. Eu me pergunto, como citou a repórter Lidiane Ramos Leal, como pode na Praia de fora a aproximadamente 5 km do moro dos cavalos nas margens da mesma BR 101, 41 índios abandonados sem assistência do Estado? Será que isso não é um caso para investigação do Ministério Publico?

  6. é isso ai mesmo tem que ir atras e mostrar oque eles fazem de verdade com o povo,eles querem acabar com o povo fazendo guerras entre os mesmos,o próprio indio falou que estao vivendo bem e até ele mesmo esta de olho bem aberto quando disse que as autoridades tem segundas intenções com essa história.Parabns pela materia Lidiane,continue com essas matérias pois a verdade tem que ser mostrada de fato.bm

  7. parabéns pela matéria Lidiane, é mesmo uma grande injustiça com essas famílias e como o próprio índio comentou eles nem querem ir para lá, então pergunto: o que o Governo e a FUNAI querem fazer se ambas as partes sairão perdendo?

  8. Muito boa a reportagem. A população não pode se calar, essa medida é nada mais nada menos que ROUBO de terras, e não pode ser levado a diante.

  9. Parabéns Lidiane, você mostrou a realidade,realmente tem gente grande por traz dos índios que estão levando vantagem com essa demarcação, isso mas uma vez que nosso pais é um pais sem lei.Porque não fazem como em Biguaçu onde a FUNAI comprou um terreno realmente propicio para os índios com nascentes, areá planta,onde eles estão plantando,porque a antropóloga que fez o levantamento não vem a comunidade explicar como foi feita esta demarcação? Tenho 53 anos nasci aqui na Enseada nunca vi índio aqui,vieram sim em 1970, onde esta antropóloga nasceu? O que ela fez no banco da academia quais disciplina aprendeu a mentira deve ser.A historia de Enseada de Brito tem que ser mudada então os registro são falsos?Senhora Maria Inês leia os livros do historiador Wilson Farias ali esta a historia destas comunidades.

  10. Parabéns Lidiane.. compartilhem todos mais esta matéria excelente que mostra o lado que ninguém vê… o lado dos injustiçados!! Para onde eles vão????? Mais do que a destruição da história da nossa comunidade e da nossa gente, estão cometendo um crime, no qual os culpados estão legitimados a usar o poder da polícia federal para tirar estes tradicionais pescadores de suas casas! Mas não podemos desistir…. lutaremos até que todos vejam os que está acontecendo aqui … ENQUANTO HOUVER ESPERANÇA VAMOS LUTAR JUNTOS!!

  11. Parabéns Lidiane, sua reportagem demostrou exatamente o que esta acontecendo em nossa região. Pessoas não-indias sendo expulsas de suas casas, índios sendo maltratados por quem deveria defende-los e uma aldeia conivente com toda essa situação pq tem sky de graça.

    Parabéns!

  12. A FUNAI ESTÁ NÓS AMEAÇANDO .LEIAM E COMPARTILHEM .

    Recebemos ligações onde a comunidade se sentiu intimidada e ameaçada pelo agente NUNES da FUNAI, que compareceu nos bairros da baixada do Maciambú escoltado pelo Policia federal com armas e tudo mais, anunciando que a população não deveria ir na câmara e nem fazer audiência publica. Que não deveria se juntar com a população da Enseada de Brito Conselho Comunitario Enseada de Brito Enseada Do Brito pq são baderneiros! Que a FUNAI vai doar terras do INCRA para eles, isso é MENTIRA, pois pescador não é agricultor! Nós vamos lutar por nossos direitos, não vamos aceitar ameaças de um homem que só anda com a policia armada. E nós vamos até o fim com isso!

  13. Parabéns a reporter pela matéria, que de uma simplicidade tremenda mostrou o outro lado da verdade, porque na desintrusão serão jogados na beira da BR 101 60 famílias de pescadores, maricultores, agricultores, que vivem em casas muito humildes que indenizadas não conseguirão ir morar nem no Frei Damião, onde um terreno já custa em torno de 30.000 reais.

    Todos necessitam de terras e moradia, inclusive os indígenas,mas essa lei que os favorece e os mantém reféns e escravos de um sistema ganancioso sem que tenham liberdade de expressão e de atos é uma desumanidade para com eles e os povos que vieram p/ o Brasil, colonizaram e fizeram do pais o que é hoje. Penso que as autoridades deveriam analisar melhor o que diz a lei, até mesmo porque TODOS NÓS, somos uma mistura de várias raças, inclusive dos indígenas, então penso que se temos o sangue deles correndo em nós, também nos cabe o direito as terras que lhe são destinadas, ou estou errada em revindicar o que é nosso por direito?? e digo direito por nascermos aqui e com certeza sermos esse povo que o mundo aplaude justamente por nossa mistura de raças!!JUSTIÇA PARA TODOS JÁ!! Inclusive para os indígenas!!

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