A cura para a COVID-19? Por Douglas Kovaleski.

Por Douglas F. Kovaleski para Desacato. info.

O texto dessa semana, baseia-se em nota escrita pela Sociedade Brasileira de Bioética e Departamento de Saúde pública da UFSC, reunindo apoio de muitas outras entidades.

Ao passo que a pandemia ainda se alastra no Brasil e especialmente na região Sul, com Santa Catarina chegando ao limite de sua capacidade de leitos gerais e de leitos de UTI para tratamento da Covid-19, as “curas milagrosas” se multiplicam.

Muitos “golpes” já foram aplicados pela internet prometendo curas milagrosas com receitas caseiras, com misturas, chás e até alguns pastores evangélicos já venderam essas falsas esperanças, é exemplo o caso do pastor Valdemiro Santiago, líder da Igreja Mundial do Poder de Deus, que chegou a cobrar mil reais por um feijão que seria capaz de curar os fiéis da covid-19. Este último responde por processo crime devido a isso. É também conhecidíssima a insistente iniciativa de Trump e Bolsonaro com relação ao uso da cloroquina como forma de tratamento. O caso da cloroquina é motivo de investigação do ministério público do Distrito Federal, pois o governo gastou milhões em insumos para a produção de um medicamento que não possui eficácia comprovada, o que caracteriza mal uso dos recursos públicos, o que deveria levar o presidente, no mínimo, à cassação de seu mandato.

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Mas nessa semana outra orientação irresponsável vem de duas importantes cidades do estado de Santa Catarina, Itajaí e Balneário Camboriú, onde um grupo de médicos e médicas catarinenses apoiam supostos “protocolos de tratamento precoce” da Covid-19 desprovidos de fundamentos científicos. Além disso, essa orientação encontra apoio das prefeituras municipais. Tais iniciativas estimulam a aplicação de recursos de forma equivocada, geram falsas expectativas, falsa sensação de segurança na população, impactam negativamente na adesão às medidas reconhecidamente eficazes de proteção e prevenção da covid-19 e podem causar efeitos colaterais significativos. Os municípios referidos estão implantando o que denominam “tratamento profilático ao coronavírus” com o uso de ivermectina, e a carta dos profissionais sugere sua ampliação para todo o estado.

Até o momento, entretanto, há apenas um estudo in vitro indicando que a ivermectina pode inibir a replicação do coronavírus, mas em doses muito superiores às aprovadas e seguras para uso em seres humanos. Esse mesmo medicamento já foi proposto para possível tratamento de outras infecções como HIV, dengue, influenza e Zika Vírus, mas em nenhum caso apresentou resultado eficaz e foi descartado em todas essas oportunidades. A carta menciona que o “tratamento precoce da Covid-19” com vitaminas C e D, oligominerais como o Zinco e outros medicamentos, tais como Cloroquina, Hidroxicloroquina e Azitromicina que têm ações comprovadas contra outras doenças, mas não contra Covid-19. Interessante é que os autores da carta não mencionam nenhum estudo que fundamente tais orientações.

Essas falsas curas tem um aspecto muito poderoso ao seu favor: a alta taxa de recuperação espontânea da Covid-19 (cerca de 80% – 85%). As eficácias terapêuticas desses produtos indicados só podem ser estabelecidas por meio de pesquisas clínicas com grupos de comparação. Logo, o uso dessas substâncias para o tratamento de covid-19 seria experimental e só poderia ser realizado como parte de protocolos de pesquisa clínica para determinar se, de fato, possuem efeitos clínicos comprovados para a doença em estudo. Schmith et al. (2020) afirmam que, até o presente, não foi realizado estudo clínico com ivermectina e placebo em pacientes com Covid-19, o que é um quesito importante de comparação segura. As autoras apontam que a dose ideal de ivermectina não foi estabelecida e que mesmo doses de ivermectina de até 120 mg foram administradas apenas a um pequeno número de indivíduos. A dosagem diária desse medicamento por períodos mais longos (por exemplo, 14 dias) na dose aprovada só foi estudada em pequenos estudos para infecções graves.

O conteúdo da carta e as ações das prefeituras citadas vão na contramão dos órgãos reguladores de medicamentos do Brasil e do mundo, os quais pautam-se em critérios científicos para garantir a segurança dos pacientes e o bem-estar da população. O uso de medicamentos existentes para uso no tratamento da Covid-19 é uma estratégia importantíssima, mas é viável quando há comprovação de eficácia e segurança de uso.

O quadro de Santa Catarina é preocupante e requer ações coerentes e baseadas nas melhores evidências. Exatamente por isso chama a atenção que em nenhum momento os médicos e médicas mencionam na carta, e os prefeitos em seus comunicados, ao menos uma medida eficaz para o controle da Covid-19, tais como testagem em massa e contact-tracing para isolamento e quarentena, distanciamento social e uso de máscaras por toda a população. Até o momento, essas são as únicas medidas com evidências científicas e aplicadas em diferentes países que possibilitaram reduzir o número de infecções, de internações hospitalares, de óbitos e a reabertura de setores da economia.

Precisamos ter paciência, caráter e ética. A paciência irá nos deixar tranquilos, aguardando em casa essa pandemia passar, afinal este é um período de provação que pode durar muito tempo, mas só afastando-se da correria imposta pelo capitalismo conseguiremos sair mais fortes. O caráter e a ética protegem aqueles que querem aproveitar-se desse momento para a autopromoção.

Douglas Francisco Kovaleski é professor da Universidade Federal de Santa Catarina na área de Saúde Coletiva e militante dos movimentos sociais.

A opinião do/a autor/a não necessariamente representa a opinião de Desacato.info

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