A Cruel-(I)-Dade do Papai Noel

Por Rodrigo Gagliano.

É estranho e estarrecedor constatar um fato do cotidiano: a maioria de nós adultos esquece simplesmente do que é ser criança. Esquecimento por um lado e insensibilidade por outro: acompanhar com interesse sincero uma ou algumas crianças em sua vida diária, olhá-las nas ruas, nos lugares de grandes movimentos como parques e shoppings, poderia dar uma dimensão mais clara de como elas sentem e reagem ao mundo, esse mundo.

Quando chegamos aqui, crianças, está tudo pronto, aprontado por outros e esses outros somos nós adultos para cada criança. É um mundo que nada tem de suave: violência física, violência simbólica e uma grande miséria afetivo-somática para quase tod@s nós, ou tod@s? Dizer isso não é dizer que tudo é ruim, mas que pode e deve ser bem melhor, mais acolhedor, menos traumático, mais livre.

Max Weber dizia do desencantamento do mundo, sei que ele pensava em outras relações com o mundo, no mundo humano, contudo, acho que eu poderia dizer que para a maioria de nós, no mundo adulto, esse mundo é profundamente desencantado. Um mundo encantado não significa nem precisa significar um mundo com duendes, fadas… Por exemplo, o mundo das crianças é encantado por si mesmo, não porque seja povoado de seres imaginários, e sim porque é emocionalmente rico, menos fragmentado, é um mundo acordado e em movimento, cada criança parece ser o renascimento constante e singular do big bang, o momento em que deus disse, sem consciência de si, “que haja luz” e “viu que isso era bom”, diz o narrador bíblico.  Nesse momento, há encantamento com as coisas, encantamento consigo mesmo e toda a potência da pergunta que tira as coisas do nada: “por que não?”  Esse parece ser o mundo infantil, encantado consigo mesmo: criação, prazer, relação, afeto, emoção…

Se não erro muito, então, de que serve uma figura que os adultos impõem às crianças: o Papai Noel (poderia citar outras, mas uma só já basta para compreendermos o todo)? Não é o encantamento de um mundo por si mesmo já encantado. O que significa o Papai Noel para uma criança? Um grande investimento de emoção, de energia vital, de confiança, de pacto. E um dia, sem mais, ela descobre que essa figura não existe!!! Que mentiram para ela: pais, avós, amigos adultos, irmãos já mais velhos e cientes de toda mentira. Pessoas em quem ela confia. A interpretação generosa dessa situação, natal-papai Noel, é uma interpretação adulta!! A criança é ferida! E da maneira mais desnecessária e mais completa: enfrenta morte e luto. E isso enfrentaremos tantas vezes ao longo da vida, com situações e pessoas de carne-e-osso, para q devem as crianças passar por isso? Se não bastasse, a figura do Papai Noel tem poder de castigar. Movimenta a roda do crime e castigo. Se você não recebeu presentes, você foi uma criança malvada, ruim, portanto, deve ser punida. Movimentam-se mecanismos de culpa. O mundo das religiões reveladas, com seu culto de dor, pecado, castigo. Vivemos em uma sociedade de classes baseada em propriedade privada (uma usurpação!), imaginem as crianças pobres e miseráveis expostas também a essa figura, posto que onipresente em nossa cultura, não recebendo presentes e tendo sua miséria ainda mais aumentada: com culpa.

A figura do Papai Noel não serve às crianças, mas aos adultos, seja como instrumento de chantagem emocional com as crianças, inculcamento de uma moralidade canhestra, consumismo, seja para o encantamento do próprio mundo adulto, normalmente, devastado pela brutalidade de seu mundo relações com as coisas e as outras pessoas.

Faz poucos anos, cruzei com a constatação, por parte de um pesquisador, informação em segunda mão, de que boa parte de nossas cantigas infantis, brasileiras, eram constituídas por imagens de violência. Revisitei minha infância: boi-da-cara-preta, pau no gato, que a cuca vem pegar, etc, etc. Que triste imaginário cultural a alimentar nossas crianças…

Muitos adultos ao me lerem, se lerem, provavelmente, resistirão ao que digo, satisfeitos consigo mesmos… Sejamos sinceros, olhem para as crianças, recuperem as memórias infantis. A única coisa a fazer com essas figuras é mandarem-nas de volta ao limbo. É preciso desaparecer com o Papai Noel.

 

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