A crise hídrica boliviana: entre o presente e o passado

Por Elissandro Santana, Porto Seguro, para Desacato.info.

Para início de discussão, é importante mencionar que a questão hídrica é um problema que afeta diversas partes do mundo e não somente a Bolívia.  O Brasil, por exemplo, mesmo detentor de elevado capital hídrico no planeta, no ano passado, em São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo e em cidades do Sul da Bahia como Itabuna, bem como em quase todos os outros estados do Nordeste brasileiro, a crise da água tornou-se uma realidade. Aliás, no que se refere ao Nordeste, o problema se arrasta há anos devido à inércia oportunista de governos anteriores a Lula e Dilma que muito pouco ou nada fizeram para resolver o problema na região.

No caso boliviano, especificamente, a questão da falta de água no país deve ser compreendida como uma problemática ambiental que passa por vertentes políticas, históricas, econômicas, culturais, sociais e, claro, ecológicas. Sem a dimensão desses eixos, a sociedade boliviana se enveredará por análises imediatistas, superficiais e, dessa maneira, como em outras partes da América Latina e do mundo, não conseguirá romper com a cultura insustentável dos gritos cíclicos em busca de alguém que sirva de expiação para a culpa que é de todos, haja vista que tudo está em conexão. Com isso, o que quero discutir é que é preciso entender a falta de água na Bolívia como algo complexo.

Sabe-se que a Bolívia vive uma seca sem precedentes, que os 15 anos de governo Evo não são suficientes para resolver problemas de décadas ou de séculos e que o país se democratizou há pouco tempo, por isso, culpar somente Evo pela situação atual é desonesto ou maldoso intelectualmente.

 As pessoas na Bolívia precisam acordar do sono político-social-histórico no qual se encontram. Elas necessitam perceber que o preço da industrialização com a qual muitos sonharam é alto, por isso, ao contrário do que está ocorrendo, a sociedade deve se unir ao governo para a apresentação de alternativas com vistas a um crescimento industrial que venha como progresso para todos, sem causar prejuízos ao meio ambiente. Com isso, não pensem que a população boliviana não deve criticar as políticas de Evo; a questão não é essa. O problema é que no contexto atual, muitos, podem, de forma eleitoreira, se valer da seca para, de forma irresponsável, desestabilizarem o governo progressista de Evo e promoverem o projeto de governo para os ricos. Também não se pode perder de vista que assim como em outros países da América Latina, na Bolívia, a direita segue firme no anseio de retorno ao poder pelo poder.

 Não somente a sociedade precisa despertar. Evo também deve repensar os modelos de produção de energia. Ele precisa entender que as hidrelétricas podem não ser a melhor alternativa, ainda que, aparentemente, pareçam viáveis economicamente. Como presidente do Estado Plurinacional e diplomata pela vida, um ferrenho defensor dos direitos e dignidades da Mãe Terra, com reconhecimento internacional nesse âmbito, necessita diversificar a matriz energética boliviana, pois as hidrelétricas, ao contrário do que muitos estudiosos acreditavam anteriormente, desencadeiam prejuízos ambientais de grandes proporções.

Acho importante dizer que a sociedade boliviana, em especial, os segmentos sociais mais pobres, aqueles que sempre foram massa de manobra nas mãos das elites políticas, precisam prestar atenção na forma como a mídia tradicional, aparelho ideológico a serviço dos poderosos neoliberais da nação, pode utilizar a questão da seca para a desconstrução da imagem do presidente Evo.

A mídia tradicional boliviana, de forma bem parecida com a que existe no Brasil, pode se aproveitar desse fato para transformar a discussão em algo político, como se a culpa fosse toda de Morales, por isso, é preciso estar atento. Para que a população não caia em nenhuma armadilha discursiva que, por ventura, possa se construir, esta deve alcançar a visão histórica, política e ambiental dos elementos geradores da crise.

Em meio ao quadro atual boliviano, é crucial que o cidadão não se esqueça de que a Bolívia nunca cresceu e se desenvolveu tanto como na gestão de Evo, por isso, ainda que o governo Morales mereça críticas, no momento, o importante é apontar saídas para a crise da água e não enfraquecê-lo. A Bolívia não pode permitir jamais que a direita retome o poder e dê continuidade ao projeto de governo somente para as castas sociais mais privilegiadas economicamente com a dependência do país mais uma vez ao capital neoliberal estadunidense.

Como considerações finais, partindo-se do pressuposto de que escrevo sobre as experiências políticas e ambientais desenvolvidas pelo governo Evo Morales há algum tempo, senti-me na obrigação de levantar alguns pontos que são importantes para que a sociedade boliviana e latino-americana, em geral, não afunde em análises simplistas em torno do problema da seca. Enfim, como já coloquei, urge compreender que a crise hídrica na Bolívia não é um problema recente, que Evo precisa diversificar a matriz de produção energética, que a direita, em nenhuma hipótese, poderá valer-se de um problema que tem origem no passado para se promover politicamente já que a situação remonta, com mais força, ao passado. Na verdade, diante do contexto no qual se encontra o país, cabe ao presidente indígena consolidar a filosofia do bem viver, como já vem fazendo desde a primeira gestão, pois somente diante de um socialismo ecológico de base será possível corrigir erros e encontrar rotas sustentáveis de desenvolvimento.

Como mencionado, a crise da água na Bolívia é político-histórica e outro fator que deve ser levado em consideração é o aquecimento global. No tangente a este fenômeno ambiental, estudiosos atestam que ele não tem origem somente no plano local. Ele atinge dimensões globais. É causado, principalmente, pelos países mais industrializados, com uma agropecuária intensiva, dentre outros agravantes, o que não é o caso da Bolívia, dado que a industrialização desse país ainda é recente e pequena e a agropecuária não atinge as proporções de países como Brasil ou Estados Unidos, dois gigantes nesse campo. Por tudo isso, pode-se inferir que a crise hídrica na Bolívia resulta de efeitos climáticos, de erros do passado e do presente, erros esses que precisam ser sanados, mas todo esse processo resolutivo desse ser tomado fora dos limites oportunistas politiqueiros.

Foto: David Mercado / Reuters

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