A coruja encontra a sua morada. Por Carlos Weinman.

Foto: Pixabay.

Por Carlos Weinman, para Desacato. info.

A condição humana é constituída por vários aspectos, entre os quais, temos a finitude, que indica o medo da morte e o desejo pela vida. O humano anseia ser diferente do animal, no entanto, sua condição finita impõe um instinto semelhante: o de buscar sobreviver, ao mesmo tempo, como diria o filósofo Hegel, um viajante do século XVIII, o ser humano se constitui por uma consciência de si e de sua dignidade. Esse princípio poderia indicar uma presunção de um ser unilateral, isto é, pensar a personificação do indivíduo, o que contradiz a consciência, o movimento que leva à humanidade, pois para que a realidade humana possa transcender a sua condição de animal deve ser percebida sobre muitos aspectos, ou seja, no movimento social.

Sobre essa condição da humanidade, Hegel não destaca apenas o movimento consequente da racionalidade, embora fosse um idealista, pelo contrário, apresenta outros aspectos, como o desejo. Nesse sentido, o filósofo Alexandre Kojève  afirma (ao comentar sobre a  filosofia de Hegel): “para que o rebanho se torne uma sociedade, não basta apenas a multiplicidade de desejos; é também preciso que os desejos de cada membro do rebanho busquem – ou possam buscar – os desejos de outros membros”.  Desse modo, a condição humana corresponde a uma realidade social, constituída por um conjunto de desejos que se encontram, que manifestam contradições e sintonias.

A princípio, o termo rebanho pode ser percebido estranhamente quando dirigido aos seres humanos. Contudo, a questão colocada é que uma grande aglomeração de pessoas com desejos individuais ou singulares apenas constituem em uma multidão e não em uma sociedade, para que essa se torne uma realidade é necessário o encontro dos desejos em uma consciência comum.

Desse modo, ao divagar pelos pensamentos de Hegel e não sendo tão rigoroso em relação aos conceitos da sua filosofia, poderíamos perceber uma diferença entre rebanho e sociedade considerando a forma como são construídos e dirigidos os desejos. A partir disso, é possível perguntar se existe um desejo que seja comum a todos os seres humanos.

Hegel indicava que o movimento da história deveria se constituir, na perspectiva política, em um percurso para a efetivação da ideia de liberdade, que foi a força motriz dos revolucionários da França do século XVIII. Esses buscaram romper com os grilhões da escravidão, do regime absoluto. A ideia de liberdade se apresentava, no movimento, pelo direito à expressão, pelo direito à propriedade privada (que antes estava atrelada as concessões do rei), pela liberdade religiosa expressa no ideal do estado laico, pela igualdade de direitos perante a lei.

A partir disso surge a questão sobre a condição dos estranhos do mundo. A revolução chegou, mas a liberdade correspondeu apenas a um aspecto, isto é, a forma perante a lei, não alcançou outras dimensões, como, por exemplo, a dimensão social. A produção da estranheza continuou se tornando cada vez maior, tão grande quanto a velocidade da produção técnica consequente da genialidade humana.

A produção técnica voltada para venda e para o consumo tornou-se uma nova realidade, uma nova forma de prisão do humano, os desejos padronizados, mas singulares, impedem que o ser humano, organizado em uma ideia imaginada do estado, a pensar na coletividade, na relação com o outro. Nesse sentido, o homem moderno, renunciou a liberdade pela segurança proporcionada pelo estado, mas no final esse não assegura mais do que apenas o estranhamento, o que confirma a ideia de Hegel que o “escravo é aquele que diante dos conflitos trocou a liberdade pela preservação da vida”.

Os viajantes da ferrugem dos esperançosos são representações de vários estranhos no mundo, que movidos pelo desejo de encontrar os irmãos transcenderam a condição de estranheza entre eles, mas para o mundo não são vistos, pois não estão no padrão de consumo. Contudo, mesmo diante da dura realidade, a esperança moveu esses seres humanos, foi justamente o desejo e a esperança que conduziu os viajantes, muitas dores se apresentaram, o que não quer dizer que estavam preparados para mais um episódio de notícias ruins.

Quando Perséfone saiu do hospital com sua mãe, Kauê os convidou para ir até a casa de Isaach, o que acabou gerando muita surpresa, Deméter o interpelou:

Você sabia onde ele estava e não nos falou sobre ele! Qual o motivo disso?

Kauê – Não falei, pois vocês já estavam abalados, agora vejo que posso contar!

Ulisses – Conte logo, por favor!

Kauê – Dez anos atrás Isaach teve um acidente vascular cerebral (AVC), era meu companheiro, conselheiro, amigo, minha força, sempre íamos pescar juntamente com seus três filhos.  Nas nossas conversas, ele relatava que queria encontrar todos vocês.

Deméter – Ele está consciente?

Kauê – Ele conversa, esquece com frequência, caminha pouco, não é consciente sobre as necessidades básicas, confunde facilmente o local do banheiro!

Inaiê – Minha nossa, eu queria tanto ter conhecido ele antes!

Kauê – Ele trabalhou muito tempo em uma empresa, quando foi demitido, as condições da família pioraram, pois sem um salário e tendo uma propriedade rural pequena, incapaz de proporcionar renda suficiente para sobrevivência, toda a família sofreu!

Perséfone – Isso é muito triste!

Kauê – Sim, sempre tenho na minha memória o dia que aconteceu essa tragédia. Lembro que naquele tempo ele ainda tinha uma esperança: sonhava em receber um direito seu, a aposentadoria, o sonho dele era levar para a família condições melhores, comprar um computador, fazer conexão com a internet para pesquisar. Porém, em uma madrugada ocorreu uma tragédia; o sol não nasceu para ele, permaneceu a escuridão, um grito, a cuia de chimarrão caiu para o lado, um estrondo e seu corpo foi parar no chão! Ele ficou no hospital por muitos dias, esteve em uma unidade de tratamento intensivo (UTI). A partir de então, a natureza tirou o seu direito de expressar, seu corpo se encheu com a doença, nunca mais foi o mesmo, passou ser dependente de todos e de um monte de remédios, até mesmo as versões sobre seus atos passou ser contada pelos outros, não tinha mais condições de trazer o seu ponto de vista.

Ulisses – A condição humana é uma droga!

Deméter – O limite da condição humana relacionado com os aspectos biológicos não é o pior! O que traz revolta são as imposições sociais! 

Kauê – Infelizmente, todos nós sofremos desde pequenos, nós passamos por muitas privações. Para piorar, ele teve duas intoxicações com agrotóxicos, pois ele era empregado e teve dois acidentes com essas substâncias. No final, o somatório das privações, das imposições acabam atingindo o corpo e a mente.

Quando chegaram na casa de Isaach, era no final da tarde, Inaiê estava aos prantos, foram acolhidos pelos filhos e pela esposa, estavam no interior, na divisa entre São Miguel do Oeste e Descanso (SC). Isaach parecia demonstrar uma alegria muito grande, mas ninguém sabia ao certo se ele estava ou não compreendendo as circunstâncias, quem eram de fato. Logo, após a janta Inaiê disse:

Falamos de liberdade de expressão, mas onde está ela? Isso é ser livre, ninguém nos reconhece, apenas trabalhamos, lutamos, adoecemos e morremos. Para tragédia do humano, para tudo isso existe um negócio, alguém se beneficia, até a morte é uma mercadoria. Como podemos encontrar a humanidade?

Roberto – Sem contar que falamos de igualdade jurídica, perante a lei, mas se olharmos, que igualdade é essa? Nós não reconhecemos o humano, apenas vivemos para satisfazer os nossos desejos até cairmos e deixarmos de viver. Para consolar, temos a fé como um negócio, uma venda de promessas para contentar o sofrimento da alma. Por isso, também pergunto: cadê o humano?

Ulisses – Pelo visto, temos apenas a tendência, já presente nos animais, de buscarmos pela preservação, mas os desejos não se encontram em uma unidade que chamamos de humanidade. Para isso, o ser humano precisa superar o conceito, superar a estranheza, enquanto houver um estranho no mundo, a humanidade continuará perdida!

Nesse momento, o filho mais novo de Isaach trouxe uma bíblia, todos pensaram que ele iria ler um trecho, na realidade, o que interessava ao jovem era um pensamento escrito pelo seu pai em um bilhete que dizia o seguinte: “quando se quer, o tempo existe, o importante é ter amor pela causa da humanidade”. Todos ficaram emocionados, entretanto, sabiam que o mundo demoraria muito para superar a estranheza nas relações, pois o exercício do pensamento não era uma prática, proporcionando ações orientadas em noções e juízos de valores equivocados.

Ademais, o estranhamento correspondia a uma forma de pensar, de sentir e de agir presente, não apenas nas relações distantes dos viajantes, mas, também, se manifestava nas relações com as pessoas mais próximas. Todavia, para superar seria necessário continuar lutando, mesmo caindo, vendo irmãos adoecerem, não poderiam perder o amor e o sonho em encontrar a humanidade. Por esse motivo, Inaiê abraçou os sobrinhos e Isaach e disse:

A viagem em busca pela humanidade ainda continua! Porém, agora quero todos vocês do meu lado!

Nesse momento, a coruja que estava na combi levantou voo, encontrou a sua morada, que não correspondia apenas a casa de Isaach. Ela passou a integrar o coração e as mentes dos viajantes.

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Carlos WeinmanPossui graduação em Filosofia pela Universidade do Oeste de Santa Catarina (2000) com direito ao magistério em sociologia e mestrado em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria (2003), pós-graduado Lato Sensu em Gestão da Comunicação pela universidade do Oeste de Santa Catarina. Atualmente é professor da Rede Pública do Estado de Santa Catarina. Tem experiência na área de Filosofia e Sociologia com ênfase em Ética, atuando principalmente nos seguintes temas: estado, política, cidadania, ética, moralidade, religião e direito, moralidade e liberdade.

 

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