A Bolívia diante de seu novo desafio

viceministro-illanes

Tradução para Desacato.info: Elissandro dos Santos Santana.

O assassinato em Panduro, Bolívia, do Vice-Ministro Rodolfo Illanes reflete, claramente, os extremos aos quais é capaz de chegar a coalizão de destituição formada pelo imperialismo norte-americano, como indomável “diretor de orquestra” acompanhado pela oligarquia tradicional e pelas diversas frações da burguesia como “segundos violinos”, para seguir com a metáfora sinfônica, e o desafinado e heterogêneo coro integrado por certos segmentos das camadas médias, a pequena burguesia e por alguns setores das classes e camadas da cidade e do campo. A metodologia foi ensaiada e posta em prática em numerosas ocasiões. Basicamente, consiste em promover mediante uma campanha sustentada por desinformação e por manipulação a irritação de grupos ou categorias sociais sensíveis, especialmente, de raiz popular, sensíveis, seja aos resultados de certas políticas pontuais que desenvolve um governo – caso dos caminhoneiros no Chile de Allende – ou, como ocorre na atualidade, no caso da República Bolivariana da Venezuela, aos efeitos de políticas globais que impactem negativamente sobre o conjunto da população, mais especialmente os mais pobres. Em não poucos casos, combinam-se ambas as táticas: no Chile, o desabastecimento planejado de certos produtos se combinou com a reação virulenta dos caminhoneiros e, infelizmente, com os mineiros na mina de cobre El Teniente, nacionalizada por Allende e que se declararam em greve por tempo indeterminado por maiores salários (a greve durou 74 dias, sendo o cobre “o salário do Chile”, como dizia o presidente chileno). Pouco depois, um violento e confuso enfrentamento com os mineiros em Santiago deixou um saldo de um mineiro morto e mais de cinquenta feridos.  Como resultou evidente, pouco depois, a mão sinistra da CIA estava envolvida em todas estas operações que terminaram com a queda de Allende e com o banho de sangue que enlutara a esse país.

secuestro de Illanes

Por isso, o infame assassinato do Vice-Ministro Illanes deve ser posto sob esta perspectiva. A conversão de cooperativas em pequenos empresários mineiros que estão promovendo a privatização de fato dos recursos minerais da Bolívia é um dado incontestável. Enquanto as políticas do governo de Evo Morales favoreceram a este setor cooperativo mineiro, a sansão em agosto deste ano da Lei Geral de Cooperativas Mineiras lhes predispuseram a serem contra. O que aparentemente despontou como foco do conflito foi a norma que autoriza a sindicalização dos trabalhadores empregados pelos cooperativistas. O modelo Walmart de proibição da sindicalização em dita empresa parece haver silenciado profundamente os cooperativistas. Em sua radical intransigência, estes, ademais, estenderam a disputa com o governo e formaram uma coalizão de sindicatos de outros setores fora da mineração. O resultado: das 10 demandas iniciais, se transferiu para uma lista de exigências de 24 pontos, acompanhado por uma greve por tempo indeterminado. Entre aqueles, se sobressaiu a rejeição à Lei de Mineração e Metalurgia que impede que as empresas privadas invistam nas concessões dos cooperativistas. Como observa Katu Arkonada, em uma análise recente, “os cooperativistas têm assinado, pelos menos, 31 dos contratos com empresas privadas, algumas delas transnacionais, sendo uma delas a Comsur de Sánchez de Losada.”[1] As reclamações contra as estritas regulações ambientais impostas pelo governo boliviano também fazem parte das queixas dos cooperativistas, o mesmo que a exigência de que os beneficiem com preços preferenciais para seu consumo de energia.

Presidente Evo Morales confirma asesinato de Vice Ministro Illanes
Presidente Evo Morales confirma asesinato de Vice Ministro Illanes

A longa experiência latino-americana neste tipo de situação não requer muito esforço de imaginação para entender o que aconteceu. Como dito por John Perkins no seu famoso livro e o ratificam os manuais de Eugene Sharp, incidentes como os que estamos discutindo são parte da SOP, “Procedimentos Operacionais Padrão” dos agentes do império. [3]  Os meios de comunicação, por exemplo, cumpriram uma função importantíssima ao colocar fogo no conflito, tal como El Mercurio e o Canal 13 da Universidade Católica o fizeram no caso do Chile. Na Bolívia, se fizeram cúmplices de uma falsidade informativa que foi divulgada irresponsavelmente para a escalada do conflito, intensificar os bloqueios e enfurecer os cooperativistas.  Após os trágicos acontecimentos de Panduro, a imprensa hegemônica deu destaque a seu trabalho de destituição afirmando que foi a intransigência do governo a causa da morte dos cooperativistas e do Vice-Ministro Illanes. Ante a magnitude destas demandas, o governo de Evo Morales manteve abertos todos os canais do diálogo e a negociação, dentro de um limite infranqueável: preservar o império da Constituição, que não podia ser colocado em questão pelo acionar de um conjunto de atores de suspeitosa intransigência. Há numerosas razões para pensar que houve alguém que iniciou a tensão para o conflito quando as negociações entre governo e cooperativistas estavam encaminhadas.  Uma falsa ordem de apreensão de dirigentes cooperativistas causou a passagem para a clandestinidade da liderança e a intensificação dos bloqueios. Um par de dias mais tarde, em 24 de agosto, se produziu o assassinato de dois mineiros cooperativistas durante os bloqueios sem poder precisar-se, até agora, os eventuais autores do disparo. [2]   O que segue é história conhecida, com outro mineiro morto e o linchamento de Illanes.

Não seria sem razão pensar que os traumáticos acontecimentos de agosto produziriam uma redefinição no marco de alianças do governo e a oposição.  Os benefícios outorgados aos cooperativistas já haviam provocado o mal-estar de múltiplos movimentos sociais que não estão de acordo com os quais mantêm os seus privilégios.  Dependendo do andamento das investigações, não seria improvável que grande parte dos dirigentes de cooperativas envolvidas nestes eventos trágicos fosse deslocada.  É evidente que o problema está muito mais além das direções do cooperativismo mineiro, que em sua base, está submetida a pressões e chantagens por aquela e obrigada a atuar como massa de manobra em bloqueios e em outras iniciativas violentas de franco carácter de destituição.

Do anterior, se despreende que o governo de Evo Morales se encontra ante um novo desafio. Para ficar longe disso, deverá atuar com serenidade e firmeza; a primeira, para não cair em provocações cuja frequência e gravidade certamente irão aumentar à medida que a Bolívia se aproxime do crucial ano de 2019, onde se colocará em jogo a continuidade do processo de mudanças iniciado sob a liderança do Presidente Evo Morales. Provocações e armadilhas fornecidas por um ambiente geopolítico que não poderia ser mais desfavorável: governos de direita radical na Argentina, no Brasil, no Paraguai, no Chile e no Peru; iniciativa norte-americana de reforçar “o controle do narcotráfico” na fronteira Norte da Argentina, com uma eventual base militar dos Estados Unidos na província vizinha de Jujuy destinada a monitorar de perto como se fosse possível o irresistível ímã, para Washington, do lítio boliviano; militarização da fronteira chileno-boliviana e exercícios conjuntos entre as forças armadas de ambos os países e a belicosidade do Ministério das Relações Exteriores do Chile pressagiam tempos difíceis para o governo dos movimentos sociais.  Serenidade, então, para responder com a frieza cerebral de um jogador de xadrez, porém, também, dizíamos, com firmeza. Se algo se pode aprender da atual tragédia brasileira é que a política de apaziguamento e concessões aos inimigos do processo, longe de atenuar sua beligerância, somente alimentam seu ressentimento e seu desejo de vingança. Convalidar com a passividade oficial o crime perpetrado pelos cooperativistas seria uma atitude suicida. Com a lei em mão, o governo deve castigar exemplarmente a seus responsáveis materiais e intelectuais. Para concluir: a Bolívia fez imensos progressos sob o governo de Evo Morales e uma adequada combinação de serenidade e firmeza lhe permitirá superar os desafios atuais como, também, romper o cerco regional constituído por governos de frágil legitimidade e cuja duração, especialmente no caso do Brasil e, em certa medida, da Argentina, está em dúvida. No passado, o governo dos movimentos sociais superou, com êxito, muitos desafios. Não há nenhuma razão agora para pensar que a história poderia ser diferente.

[1] “10 perguntas 10 respostas sobre o conflito com os “cooperativistas” mineiros na Bolívia”, em http://www.telesurtv.net/bloggers/10-preguntas-y-10-respuestas-sobre-el-conflicto-con-los-cooperativistas-mineros-en-Bolivia-20160827-0002.html  27 de agosto de 2016. Remetemos a este trabalho para uma exaustiva indagação sobre diversas facetas do tema que nos preocupa e que não podemos tratar em nosso trabalho.

[2] Cabe recordar que o Presidente Evo Morales proibiu não somente disparar, mas que a polícia se faça presente no lugar dos bloqueios portando armas de fogo.

[3] John Perkins, Confissões de um gângster econômico (Barcelona: Ediciones Urano, 2005) ou os diversos manuais para a desestabilização de regimes ditatoriais de Eugene Sharp.

Artigo original: Atilio Borón.

 

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