A assunção de Itamar

Raul Longo.

“Posso até estar ficando louco, doido, louco. Mas meu coração está bem lúcido. Fica ardendo, me comendo lá no fundo, cada segundo, cada minuto, cada momento!” – Itamar Assumpção.

Embora não conheça o Kiko Dinucci, recomendo aos editores que por ventura venham a se interessar em criar uma imprensa no Brasil. Kiko me faz lembrar o Jairo Arco e Flexa que foi o último verdadeiro crítico de cinema de que me lembro.

Apesar do Kiko fazer aqui mais uma resenha do que uma crítica, transpõem e analisa o que se propõe com muito mais substância e informação do que aquilo que se encontra por aí nas páginas dos diários encalhes que se dizem imprensa.

Talvez, como os pseudos críticos da pseuda imprensa, Kiko também tenha recebido um release sobre o filme que comenta, mas ao invés de apenas fazer o copydesk para ajustar a um espaço disponível, em texto enxuto fez muito mais. Tanto que não me contive e acabei respondendo ao amigo que enviou o texto do Kiko em outra análise sobre os motivos que inviabilizam gênios como o do Itamar a assunção que só agora, enfim, se lhe confere.

Depois do texto do Kiko, a programação do filme e finalizando, à quem interessar, o meu comentário sobre os gênios perdidos pelo Brasil. Sobre o filme não digo nada, posto que já feito, além de que não vi. Mas já gostei. Tanto pelo dele conta o Kiko como pelo Itamar Assumpção a quem, se eu fosse mulher, teria dado pra ele.

 

Por que você deve assistir “Daquele instante em diante”

Kiko Dinucci

   É impossível passar incólume ao filme de Rogério Velloso sobre o compositor e cantor Itamar Assumpção. E é bem possível que uma pessoa que desconheça a obra de Itamar e que veja nas duas horas de sessão pela primeira vez toda a trajetória desse furacão, sinta muita vergonha por não ter conhecido antes (como bem escreveu Luiz Chagas, guitarrista da banda Ísca de Polícia, na revista Brasileiros). Imperará nesse caso, no mínimo, uma sensação de quem ignorou o choque de um meteoro contra o planeta. Como não percebi isso antes?

   Não é à toa que o filme começa em tom investigativo. Seus personagens vasculham os mais remotos arquivos pessoais para o público tentar  desvendar o que foi a passagem desse artista pelo século XX, dono de uma obra intensa e original, a frente de seu tempo (ainda) e que desafiou as estruturas da indústria fonográfica e da própria linguagem da música popular brasileira.

   Suzana Salles, Alice Ruiz, Luiz Waack e Alzira Espíndola aparecem no início do documentário procurando arquivos sonoros, manuscritos, matérias de jornais. A investigação será a principal ferramenta de Velloso para conduzir o filme, do começo ao fim, ele mostrará arquivos de áudio, vídeo, fotos, shows, entrevistas, reproduzindo de certa maneira a investigação dos personagens iniciais. Suzana Salles mostra o seu fichário e avisa: estão mais ou menos organizados. Parece ser a ordem de como Velloso irá expor os seus arquivos. Para Itamar, “totalmente organizado” seria uma prisão. O “mais ou menos organizado” abre o leque para a surpresa, o inesperado, e é isso o que acontece.

   Embora o filme tenha uma narrativa linear, não se rende ao convencional. O diretor opta por uma narrativa polifônica, assim como os arranjos e composições de Itamar. Vozes sobrepostas, sons de cenas futuras ou anteriores invadindo o começo e o fim das cenas e um incrível diálogo das canções de Itamar com os temas sugeridos pelos depoimentos. Fica evidente nesse caso a observação de Luiz Tatit, que diz que Itamar vem de uma leva de artistas que não distinguem a sua obra da vida real. Eis o que faz as canções entrarem no filme como uma linha de costura entre as cenas.

   Outra característica forte do filme é a exposição biográfica do artista feita a partir de fragmentos que não necessariamente se prendem a um fato ou uma data. Aqui os dados biográficos aparecem de forma paralela. Como por exemplo quando é narrada a repressão policial que Itamar sofreu em vida. O compositor fala sobre o episódio do gravador que ele portava e que a polícia suspeitou ser roubado (o que o levou a passar cinco dias na cadeia). Arrigo Barnabé completa a história, mas avisa que esse não foi o único episódio de discriminação sofrida por Itamar. Logo em seguida Paulo Lepetit cita outro caso passado durante a turnê de shows do projeto Pixinguinha. Zena, viúva de Itamar, ressalta que o nome da banda Ísca de Polícia não surgiu do nada e que seu marido era vítima constante de batidas policiais. Alice Ruiz reflete sobre a disparidade do talento de Itamar com as situações discriminatórias com que ele se deparava. Itamar reaparece se dizendo contra a postura agressiva dos policiais. Todos os fatos aparecem paralelos, costurados, sem exatidões, quase abstratos, mas refletem de forma eficaz o tema central da cena, o racismo.

   Durante o filme, notamos que a montagem ágil usa mais um elemento de fragmentação, a colagem de uma mesma fala. Em vários momentos a fala de um único personagem é fragmentada, recortada e reelaborada por Velloso, colada uma na outra, formando uma só idéia. O jornalismo televisivo já usou  e abusou dessa técnica a serviço da distorção e da má fé. Mas aqui o diretor trabalha como um compositor, um arranjador, cola momentos diferentes de uma mesma fala a serviço de sua investigação, o que dá um movimento vitorioso ao ritmo do documentário.

   “Daquele instante em diante” é separado em blocos. O primeiro é sobre o impacto da obra de Itamar,  tudo é arrebatador: o talento do compositor e seus músicos, a estética, a linguagem, os elementos cênicos. Tudo é beleza, novidade e espanto. São notórias as imagens de  performances da banda Ísca de Polícia.

   No segundo bloco, nos deparamos com a dificuldade de Itamar para com o mercado musical da época e vice e versa. Saímos da reflexão artística da obra de Itamar para entrarmos no tema que tanto atormentou o protagonista: o mercado. É assustador assistir à guerra entre Itamar e seu tempo. A partir desse momento o espectador sai do estado de deleite do primeiro movimento do filme e se encontra em um território árido.

   Mas nos deparamos também, a partir desse drama, com um Itamar humanizado, que cuida do seu quintal no bairro da Penha (Zona Leste de São Paulo), que cultua as suas orquídeas. Essa humanização se estende aos entrevistados, que preparam cafés, falam ao telefone, relembram, riem, como se a câmera não estivesse mais ali. A cena cotidiana acaba por relaxar os depoimentos e Velloso se transforma em um diretor mosca, colhendo o que de mais importante esses personagens podem revelar, a viagem, a aventura com Itamar. Suzana Salles diz no final do filme: quando lembramos de uma viagem, não lembramos das malas, do aeroporto, mas sim das coisas boas. Os depoimentos de Alice Ruiz, Marta Amoroso e Tonho Penhasco também sobressaem, soam como epílogos para cada cena.

   Embora Itamar esbravejasse sempre que necessário, contra o mercado, contra o mundo, mostrando “com quantos nãos se faz um sim”, respondeu com uma obra apaixonada e criativa. Isso fica evidente durante os últimos minutos do documentário, sobretudo no episódio que fala de sua doença. Itamar diz: “minha doença não tem que entrar na roda, não interessa”. Itamar passou por cima de qualquer obstáculo fazendo arte. Em outra cena ele canta (à capela) a sua parceria com Paulo Leminski, “Dor elegante”, no auge de sua doença, em plena dor, a letra diz: “ópio, édens, analgésicos/ não me toquem nessa dor/ ela é tudo que me sobra/ sofrer vai ser a minha última obra”.

   A solidão de Itamar fica explícita no vídeo, quase insuportável para quem assiste. O público já não olha Itamar com uma visão externa, sofremos na carne os seus dramas, pensamos principalmente na condição da cultura no Brasil, o buraco é mais embaixo, uns choram, outros se revoltam e Itamar para surpresa de todos continua a derramar belezas, tal qual uma grande gargalhada de desespero, ofende e fere com tanta beleza.

  Itamar Assumpção travou sozinho uma guerra contra tudo que considerou injusto para um artista brasileiro.  Com as consecutivas portas fechadas, Itamar respondeu com muita produção, realizou quase todos os projetos que quis e fez em vida nove álbuns e  mais três póstumos. Essa resposta foi uma oferenda, um sacrifício, uma missão que só será compreendida daqui há pelo menos 50 anos, sim, porque o Brasil ainda se mostra despreparado para digerir a sua obra. Em seu último show, debilitado, Itamar canta uma canção de Djavan ao lado das Orquídeas do Brasil e repete o último refrão: “minha vida por inteiro lhe dou”. Não por acaso, a última frase de Itamar em cima de um palco.

Saiba mais sobre o filme: http://daqueleinstanteemdiante.tumblr.com/

 A programação para a semana de 22 a 28/07

São Paulo

Espaço Unibanco de Cinema – Augusta

Sessão: 18h (até 26 de julho)

Sala: 03

Sessão: 18h

Sala: 05

Rua Augusta, 1.475 e 1.470 – Consolação – São Paulo – SP, 01305-100

Unibanco Arteplex Frei Caneca

Sessão: 18h30

Sala: 05

Rua Frei Caneca, 569 – Consolação – São Paulo – SP, 01307-001

Espaço Unibanco de Cinema – Pompéia

Sessão: 21h50

Sala: 10

Rua Turiassu, 2.100 – Barra Funda – São Paulo – SP, 05005-000

Santos

Espaço Unibanco de Cinema – Miramar

Sessão: 17h50

Sala: 03

Av. Marechal Floriano Peixoto, 44 – Gonzaga – Santos – SP, 11060-300

Rio de Janeiro

Unibanco Arteplex – Botafogo

Sessão: 18h

Sala: 05

Praia de Botafogo, 316 – Botafogo – Rio de Janeiro – RJ, 22250-040

Curitiba

Unibanco Arteplex – Crystal

Sessão: 18h

Sala: 02

Rua Comendador Araújo, 731 – Batel – Curitiba – PR, 80420-000

Porto Alegre

Unibanco Arteplex – Country

Sessão: 17h50

Sala: 08

Av. Túlio de Rose, 80 – Passo da Areia – Porto Alegre – RS, 91340-110

Salvador

Espaço Unibanco de Cinema – Glauber Rocha

Sessão: 18h50

Sala: 04

Praça Castro Alves – Centro – Salvador – BA, 40020-160

Fortaleza

Espaço Unibanco de Cinema – Dragão do Mar

Sessão: 19h

Sala: 02

Rua Dragão do Mar, 81 – Centro – Fortaleza – CE, 60060 390

0 ? / 23 July, 2011

… Não sei se você assistiu a uma entrevista do Paulinho da Viola, se não estou enganado no Roda Viva da TV Cultura no tempo em que ainda prestava, da qual participou o Itamar.

Foi triste de ver, pois Itamar estava ali visivelmente revoltado, e com muita razão. Ficou evidente também que tanto o Itamar ignorava muito do Paulinho quanto Paulinho não tinha conhecimento algum do talento do Itamar, mas claro que Itamar sabia do sucesso do mestre da Portela e o cobrou, estendendo-se a todos os artistas negros que se consagram, por não se preocupar em apoiar aos jovens talentos negros que encontram tantas barreiras racistas no início de suas carreiras.

 Na verdade, nessas alturas Itamar não era mais iniciante, mas continua não reconhecido como merece, mesmo  que postumamente.

 Deu para perceber o grande mal estar que a intervenção do Itamar provocou em todos os demais entrevistadores. Mas o Paulinho da Viola, com aquela doçura e elegância que lhe é tão característica, não apenas demonstrou compreensão, mas identificou-se com as queixas do Itamar, explicando-lhe que não esperasse melhores oportunidades mesmo que viesse a alcançar o reconhecimento do qual se fazia merecedor. E, ainda que sem exemplificar, se referiu às suas próprias dificuldades, lembrando as de Cartola, Nelson Cavaquinho e outros nomes sagrados do panteão musical brasileiro. Mesmo tanto contribuindo pelo nosso reconhecimento cultural perante o mundo, aqui nunca se deixa de ser discriminado pelo pigmento da pele. Quando muito, pode acontecer de se tornar “o preto mais branco do Brasil” na concessão de um colunista social de plantão.

 Pouco tempo depois ocorre aquele vergonhoso episódio da Prefeitura do Rio de Janeiro que então determinou um cachê para o Chico Buarque, o Gil e o Caetano Veloso, e outro para o Paulinho da Viola. Mas se no valor do cachê depreciado ao Paulinho exemplificou-se o que ele dissera à Itamar na entrevista, o próprio Gilberto Gil justificou a colocação do Itamar, pois para minha grande decepção o assisto pela TV em duras acusações ao Paulinho da Viola, por ter brigado pelo justo direito de receber igual aos demais.

 Soube por alguém que na verdade quem brigou nem foi o próprio Paulinho, mas sua mulher. De toda forma era revindicação muito justa e ainda hoje me surpreendo por aquela declaração do Gil, inclusive pelo fato de ali se expor nítido preconceito. Pelo que entendi do caso, a participação de todos fora igual, mas os cachês foram combinados separadamente e Paulinho aceitara o que lhe ofereceram, daí Gil achar que não teria direito à reclamação posterior. Como não? Mesmo só se inteirando posteriormente do valor real dos cachês, a discriminação já ocorrera ao lhe oferecerem um cachê menor que certamente não teria aceito se soubesse que o depreciavam em relação aos demais.

 A questão em si não é a grana, mas sim o sentido da coisa. Em que Paulinho se desmerece perante Chico Buarque, Gilberto Gil e Caetano Veloso? Vendem mais discos ou são mais conhecidos internacionalmente? E daí? Em relação ao histórico da música brasileira e carioca em particular, ocupam o mesmo patamar de importância.

 Mas especificamente ao Itamar Assumpção a coisa foi pior porque surgiu numa época em que uma sociedade historicamente cerrada, depois de experimentar duas décadas de abertura novamente se recolhia ao estreitamento e sofria um sistemático e planejado bloqueio no mercado cultural. É interessante observar os comportamentos de São Paulo e Rio de Janeiro nas década de 60, 70 e 80, tão sintomáticas ao Brasil.

 Não por acaso e nem apenas por Dona Leonor Mendes de Barros, mulher do então governador Adhemar de Barros, em São Paulo se lançou a Marcha de Deus com a Família e se instaurou a TFP. São Paulo e Minas Gerais centralizaram a política do coronelismo que dividiu a velha república na sucessão café com leite por muitas décadas. Enquanto isso no turístico Rio de Janeiro se desenvolveu uma abertura maior através de suas rádios, bares, casinos e casas noturnas, desde os anos 30.

 O retraimento moralista da sociedade carioca já fora quebrado décadas antes por um movimento chamado Chiquinha Gonzaga que, sozinha, virou o balde da hipocrisia imposta pelos barões do café. Tivera a ajuda indireta de precursores como Machado de Assis que, apesar de moderado, sem dúvida mexeu com a compreensão da sociedade carioca sobre si mesma e, pra completar, Lima Barreto chafurdou-lhes o focinho na lama. Depois vieram João do Rio e toda uma imprensa voltada à divulgação das expressões e talentos populares, enquanto o feudalismo cafeicultor emigrava para a Alta Mogiana dos sertões de São Paulo.

 Em São Paulo capital, apesar dos esforços dos Modernistas, o peso do moralismo latifundiário esmagava mais do que o de uma saca de café e o Movimento de 22, em verdade, ficou circunscrito a uma meia dúzia de intelectuais entre os quais, tirante Oswald, Mário, Alcântara Machado, o italiano Brecheret, o interiorano Portinari e o carioca Vilas Lobos, poucos outros tinham reais boas e novas propostas, pois a maioria ainda patinava em ufanismos de positivismo brejeiro, como o chato do Guilherme de Almeida com seu “bandeira das 13  listras, és um marco de conquistas dos paulistas, trabalhistas” e por aquele amontoado de rimas pobres afora.

 Mas se a Revolução de 30 foi um desastre para São Paulo e acelerou a ascensão da cultura popular no Rio de Janeiro, o golpe de 64, apesar da TFP e da Marcha das Madames cansadas de dar ordem às empregadas domésticas, teve efeito inverso. Já se vinha cozinhando no cadinho cosmopolita do impulso desenvolvimentista que Getúlio Vargas impôs ao parque industrial paulista, algumas expressões de peso, principalmente no teatro com Cacilda Becker, Guarnieri, Boal, Zé Celso e Plínio Marcos. Havia muita coisa nas artes plásticas, na arquitetura remanescente do modernismo e as iniciativas de indústria cinematográfica, além de reflexos literários modernistas pelos circunspectos irmãos Campos e o semiótico Décio Pignatari.

 Pois o movimento estudantil em reação à ditadura, com o Centro Popular de Cultura, gerou a percepção de um mercado emergente e deu-se o boom dos festivais. Aquilo foi a redenção da Paulicéia que se fechou aos seus próprios proponentes da Semana de Arte Moderna de 22, mas não se conteve perante um Brasil que até então ainda desconhecia. Pelos festivais, São Paulo descobriu o Brasil.

 A juventude paulistana de então abriu as trancadas porteiras dos seus lares e deixou passar o que viesse. Que venha Chico Buarque e Nara Leão! Venha Geraldo Vandré, Sérgio Ricardo, Elis Regina, Marcos Vale, Simonal, Vinícius de Moraes, Edu Lobo, Milton Nascimento! O próprio Paulinho da Viola e muitos outros. Por outras tangentes entraram  Roberto e Erasmo Carlos, Vanderlea, e jovem guarda afora.

 Veio de  tudo o que a São Paulo tão solida em seus convicções europeias não assimilava:  Luís Gonzaga, Glauber Rocha, velhos e novos baianos de Caymmi à Moraes Moreira. Apesar de a princípio vaiarem o resgate tropicalista da Semana de 22  e sua própria “mais fiel tradução” na Rita Lee dos Mutantes, acabaram fazendo de Caetano Veloso ídolo de culto religioso com direito à imolação dos infiéis.

 São Paulo adoidou, mas no rastro de tamanha descoberta tantos séculos após Cabral, muita coisa boa surgiu e ressurgiu, até mesmo das próprias sarjetas da Paulicéia Desvairada em suas casmurras solidões. Veio à tona  Adoniran Barbosa, Vanzolini, Zé Celso, Plínio, Ignácio de Loyola Brandão, João Antônio e outros sistematicamente ignorados, como se ao descobrir-se Brasil, São Paulo descobrisse a si mesma.

 E assim se tornou um oásis dentro da desértica censura ditatorial, ainda que por ela também fosse ceifada em inúmeras oportunidades e com idêntica violência. Com ou sem censura, se o cearense quisesse dar velas à sua jangada que a transferisse do Mucuripe para a Avenida Paulista ou Brigadeiro Luís Antônio, onde os ventos não deitaram calmaria por todos os anos 70.

 Tudo isso sem contar os Beatles e os Rolling Stones, com seus correlatos do Woodstock que através da concentração de consumo paulista, ali encontrou promissor mercado prontamente atendido por Odeon, CBS, Phillips, Aple e toda a indústria fonográfica, com direito à rabeira dos interiores por onde comercializavam os rejeitos do mercado urbano com excelentes resultados, pois o Trio Parada Dura, embora poucos saibam, vendia mais discos do que Roberto Carlos.

 Mas aí, no comecinho dos anos 80, surge em São Paulo uma nova geração de músicos e interpretes de excelente qualidade, numa tal diversificação de estilos e temáticas que transladariam a Viena do século 18 para o final de século 20 na América do Sul.

 E não era um aqui outro acolá, não. Eram muitos. Muitos mesmo! E impossível qualificá-los pois havia de tudo e todos excelentes em seus estilos. Citar seria enumerar uma relação fastidiosa e cheia de injustas omissões por esquecimento, pois simplesmente impossível lembrar de todos. Propostas que iam desde uma erudição comparável à do Elomar ou ainda anterior, até um vanguardismo ao jeito de Tom Zé ou pra adiante.

 No entanto, esse exército de compositores, arranjadores, musicistas, grupos, solos, resolveram se concentrar num pelotão de Quixotes e investiram contra o gigantismo dos moinhos da indústria fonográfica, numa pretensão de produções independentes.

A princípio a coisa deu muito certo. Você ia a um show de um grupo daqueles num porão embaixo de um bar na Vila Nhocuné e, se não chegasse com horas de antecipação, teria de assistir pelo buraquinho no chão aberto por outros que ficaram de fora por absoluta falta de espaço entre os em pé ou amontoados nas cadeiras de pau.

No Lira Paulistana, na Praça Benedito Calixto em Pinheiros, pequena sala permanentemente lotada pelas apresentações dos integrantes do então chamado Movimento dos Independentes, nem pensar! Ingressos só com meses de antecipação. A outra alternativa era morrer com a consumação dos botecos da Vila Madalena ou do Bexiga e, ainda assim, com risco de ser barrado por excesso de lotação.

Não havia nenhum com mais ou menos público. Todos eram perseguidos por legiões de jovens como ratos atrás do Flautista de Hamelin, pois não só a qualidade era comprovada até por convites de excursões à Europa, como as linguagens eram surpreendentemente inovadoras.

Mas aí, Montouro venceu as eleições ao governo do estado. Lembro bem, porque lá no Lira Paulistana, um daqueles grupos fez uma paródia com o sucesso de outro carioca: “Ok Montouro! Você venceu. Mas realmente, realmente, eu preferia o Lulaaaaa!” E vinha o refrão: “Você não soube votar! Você não soube votar!”

Não sei se aquilo mexeu com os brios tucanos, mas daquele grupo carioca remanesce ainda hoje a Fernanda Abreu com algumas coisas interessantes, o Lobão que ficou desinteressante e o Evandro Mesquita que tem feito alguma graça  em seriado semanal da Globo, mas dos tantos excelentes músicos que de todo o Brasil emigravam para São Paulo, de poucos há ainda alguma notícia. As pás do moinho fonográfico levaram suas lanças e São Paulo caretou de vez. Fechou-se a porteira.

Não acho que Montouro teve culpa disso, coitado. Desconfio até que fosse bom sujeito, mas se juntou com gente errada que o sucedeu de cara amarrada, como quem não se sacia e ainda reclama do que come. Mas daquele instante em diante a cidade foi perdendo a graça.

 Também não se pode culpar exclusivamente ao bando de tucanos dos céus que São Paulo não tem,  pois em verdade quando um povo de uma cidade tão populosa resolve se abrir, não há tranca que segure a porteira do sol da poesia, da música e da criatividade. Essa mesma história que estou contando e os próprios paulistanos são uma comprovação.

Mas também é preciso reconhecer que houve toda uma estratégia bem armada da qual acompanhei alguns lances e relembro num exemplo. Só não queria declinar o nome para não parecer aquilo de pegar pra cristo, o costa larga, o Judas, testa de ferro, mas de toda forma Roberto Marinho era o dono da Rádio Excelsior então dirigida por Maurício Kubrusley que somente programava, durante as 24 horas de transmissão, produções independentes. E dá para se fazer ideia da quantidade de músicos independentes que a cidade abrigava pelo slogan: “Excelsior – a rádio que não repete música nem que o ouvinte peça”. Havia um programa que atendia a pedidos, porém só no dia seguinte ao que a música foi difundida.

 Pois no de pico de audiência por mais de ano entre todas as emissoras paulistas, a Excelsior teve seu diretor transferido para a TV Globo no Rio de Janeiro e mudou toda a programação. Pois deram uma blitz na Exelcior, enquadraram todos os Independentes e mandaram descer pras masmorras do olvido.

O Maurício colocaram de castigo no Fantástico e através de um remake de programa musical com incipientes grupos de rock se lançou o que a partir de então a indústria fonográfica impôs à todas as rádios do Brasil. Dali saiu alguma coisa boa como Cazuza e Cássia Eller, mas, sem desmerecê-los, até por ser fã desses ídolos igualmente saudosos, tenho de reconhecer que nenhum alcançava as propostas temáticas, poética e musicalidade da qual Arrigo Barnabé e Itamar Assumpção são exemplos.

Inovação que em Arrigo se notabilizou até na Alemanha de Nina Haig, embora no Brasil quase se o conheça somente por uma citação do Caetano em “Língua”. De Itamar, praticamente nada.

Pois foi nessa época que Arrigo Barnabé e Itamar Assumpção chegaram à São Paulo vindos do sertão do Paraná , assim como muitos outros jovens músicos emigraram de todas as capitais e interiores do Brasil, em busca de uma oportunidade junto ao público paulista, então ansioso por novas luzes e novos sons.

Ceifados por Roberto Marinho e pela indústria fonográfica de capital estrangeiro, aqui instaladas e com maiores interesses em Chã-chã-chã de pouca exigência e custo de produção do que em Iscas de Polícia nas quais se despende mais tempo de estúdio de gravação e o cachê de experientes músicos para o acompanhamento, muitos Itamares brancos e negros, asiáticos também, se tornaram ventos engolidos pelos moinhos que abafaram São Paulo.

Gênios, é verdade! Mas o Brasil é um país dirigido por poderes demasiadamente anacrônicos, burros, estúpidos. É a Idade Média. Ainda anteriores a Monarquia Inglesa onde a Rainha deu título de Sir a quatro cabeludos de Liverpool porque percebeu a lógica do que significavam economicamente aqueles meninos inconsequentes que tocavam bem a tal da guitarra e um baterista de contrapeso, ainda que apenas um experimentasse áureas de genial, pois, como disse o Keith Richards, “Os Beatles eram John Lennon”. O mais pobre deles, o filho de uma prostituta.

Aqui no Brasil o filho de uma prostituta pode ser Mozart, mas nunca passará de um filho da puta. Itamar era gênio, mas e daí? Negro e pobre nasceu pra ser Isca de Polícia, de tucano, da Globo, da classe média, da moral, do social.  E dessa forma o Brasil vai caçando-se a si mesmo, como ao longo dos anos 80/90, sem sequer saber o que de si estava matando, abateu-se o que de melhor sobreviveu à ditadura.

Como dizia o querido Maestro: “o Brasil não merece o Brasil”. Não soube merecer Itamar Assumpção.

Quem sabe agora ou daqui pra frente, não é? Mas ainda está difícil.

 

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