Os braços de Joelson

Por Raquel Moysés.

Anilton e Margareth acariciam, com o olhar, duas verdes vidas que acabam de fincar no chão. São tenras mudas de ipê e de pitangueira, mas já  anunciam o esplendor da árvore adulta. Devem crescer frondosas no terreno do campus e, daqui a algum tempo, os delgados ramos vão se erguer sob os céus, lembrando braços humanos de um trabalhador que morreu  ali pertinho, construindo mais um prédio da Universidade Federal de Santa Catarina.   Do lugar em que as raízes se  enfronham na terra,  avista-se o esqueleto de concreto  onde Joelson de Moura perdeu a vida. Vida breve, de apenas 31 anos.  Foi em 3  de maio de 2011, por volta das 10h35min,   dois dias depois da data em que se  comemora mundialmente o Dia do Trabalhador. Obscurecendo o humano, o  calendário oficial, é claro,   registra 1º de maio como Dia do “Trabalho”. E, quase sempre,  as mortes no trabalho acabam configuradas como “acidente”.

Joelson de Moura morreu soterrado por uma viga que desabou. O prédio em construção, de quatro andares, situa-se na área do Centro de Desportos da UFSC (CDS), que utilizará o edifício para atividades administrativas. E foram alguns estudantes do CDS, organizados no Centro Acadêmico de Educação Física (CAEF), que impediram que essa morte passasse em branco na universidade, acostumada a guardar silêncio sobre quase tudo o que incomoda a oficialidade. Para que fato grave como a morte de um homem não ficasse inscrito no terreno da fatalidade,  como se não houvesse responsáveis por isso, estudantes, poucos,  insubstituíveis,  deram vida, dia 12 de maio,  a um ato  público, com a presença de  Anilton,  irmão de Joelson, e de sua mulher, Margareth.

“Não é normal um trabalhador morrer no seu local de trabalho”, disse, enternecida, a estudante de Educação Física Priscyla Queiroz.  “Estamos aqui para romper o silêncio e porque vemos o outro como extensão de nós mesmos. Por isso,  perguntamos:  O que vale a vida de um trabalhador? Qual é o significado da vida de um trabalhador?”

No palco de relva, antes que a terra fosse rasgada  para receber  as mudas de  pitangueira e ipê,  Felipe Pessoa, outro estudante, com sua   voz juvenil, restaurou o  mistério poético de  “O operário em construção”,  nos  versos universais de Vinicius de Moraes:

Era ele que erguia casas
Onde antes só havia chão.
Como um pássaro sem asas
Ele subia com as casas
Que lhe brotavam da mão.
Mas tudo desconhecia
De sua grande missão:
Não sabia, por  exemplo
Que a casa de um homem é um templo
Um templo sem religião
Como tampouco sabia
Que a casa que ele fazia
Sendo a sua liberdade
Era a sua escravidão…

O operário Joelson trabalhava há pouco tempo na construção civil,  lembra Margareth. Com olhar perdido, imersa nas recentes recordações da dor, a mulher conta que eles vieram, com os  três filhos, de Morretes, cidadezinha histórica do litoral paranaense.   Na grande Florianópolis, o marido encontrou trabalho, mas durou apenas  um ano na lida que lhe arrancou da vida, em meio a um  estrondo de concreto em queda livre. Bem que Joelson intuía que algo não ia bem naquela obra, contam os familiares. Poucos dias antes da morte, mais de uma vez ele dissera aos colegas de trabalho que havia algo esquisito naquela construção. Esta obra, ele falava, tem algo errado, não está segura.

No dia em que Joelson morreu soterrado,  a filha mais nova, Maria Eduarda, completava seis anos de idade. Ficaram  também órfãos o menino Paulo, de oito, e a adolescente Kethlyn, de 12 anos. No fim do ato, a mãe das crianças teve a delicadeza de fotografar, com o celular, as mudinhas recém plantadas.  “As crianças vão pedir para ver… Elas até queriam vir aqui hoje…”

Beijou sua mulher como se fosse a última
E cada filho seu como se fosse o único
E atravessou a rua com seu passo tímido
Subiu a construção como se fosse máquina…

Sobre a morte, a  imprensa informou  que, quando a Polícia Civil e o Corpo de Bombeiros chegaram ao local, já não havia nada a fazer. A notícia que saiu no portal da UFSC na internet (“Acidente em obra terceirizada mata operário na UFSC”), publicada em 3 de maio de 2011,  diz:  “As poucas informações disponíveis dão conta de que o empregado fazia a inspeção em cima de uma viga quando esta desabou, trazendo junto todas as demais, sendo que uma caiu sobre ele. O bombeiro George Ferreira, que coordenou o resgate, disse que os soldados fizeram uma alavanca com partes destruídas da estrutura para retirar o corpo.” A nota informa  que “o projeto estrutural foi contratado em 2010 pelo Departamento de Obras e Manutenção Predial da UFSC” e que a  assessoria de imprensa da Cassol “emitirá nota sobre o acidente”.

Mas a apuração das responsabilidades, como fica, perguntam os estudantes? Eles encaminharam à direção do Centro de Desportos um ofício solicitando esclarecimentos.  Não há como reparar a perda de um homem, insistiram  durante o ato, “mas a obra é terceirizada, construída com recursos públicos da universidade, e é difícil imaginar que a UFSC não tenha responsabilidade pelas obras que contrata.”

Até agora nenhuma nota pública da reitoria esclareceu a comunidade sobre os acontecimentos, sobre as responsabilidades pelo projeto de execução da obra,   fiscalização  e prevenção de acidentes, muito menos sobre a assistência à família do operário morto. Saiu, no entanto, na mídia, a  declaração de um pró-reitor sobre o fato de estarem sendo negociados os prazos para recuperar o tempo perdido na obra, que  deve sofrer atraso.

Mas os estudantes prometem não esquecer essa vida perdida em meio aos escombros. Os que organizaram o ato estão passando um abaixo-assinado no campus, solicitando  que ao prédio seja dado o nome de Joelson de Moura, mais um trabalhador  invisível  que perde a vida no seu local de trabalho. Aos pés das mudas que se enraízam no chão, se comprometeram a colocar uma placa com o nome do operário e das árvores que crescem em sua memória.

A pitangueira foi doada por trabalhadores da UFSC que cuidam das plantas do campus. A plantinha de ipê, como lembrou o professor Edgard Matiello Júnior,  foi oferecida  por outro docente do curso de Educação Física, Paulo Capela. A muda lhe fora doada por um morador  do Alto da Caieira, antes que sua casa, declarada irregular,  fosse  demolida pelo poder público.  As irmãs do pequeno ipê são árvores frondosas,   e o  homem que cuidava delas,  ao doar a mudinha,   disse ter certeza de que ela encontraria o seu destino. E encontrou.

Ao lado da pitangueira,   o rebento de ipê agora  afunda raízes na terra e,   como no poema  de Vinicius, como tudo que cresce, ela não há de crescer em vão. Ela há de crescer em alto e profundo. Em largo e no coração. Para recordar todos os trabalhadores que morreram no trabalho. E para lembrar que “operários em construção” também  hão, quem sabe um dia,  como nos versos do poeta,  começar a dizer  não!

E um fato novo se viu
Que a todos admirava:
O que o operário dizia
Outro operário escutava.
E foi assim que o operário
Do edifício em construção
Que sempre dizia sim
Começou a dizer não.

 

*Textos citados: “O operário em construção”, de Vinicius de Moraes, e “Construção”, de Chico Buarque.

Fotos do ato:

http://img801.imageshack.us/g/20110512034.jpg/

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