Por Ismar Nascimento Jr.
Há quem diga que, no início do ano, na Bahia, as “coisas” só funcionam depois do carnaval. Nesta afirmação há um duplo engano: primeiro, a “Bahia” a que esta frase se refere é a capital, Salvador, ignorando-se as mais de 400 cidades que compõem o Estado[1]. Segundo, o carnaval, enquanto produto cultural tipo exportação, a partir da década de oitenta, sempre movimentou uma engrenagem que funciona, desde janeiro, a todo vapor. Ou até mesmo antes disso. E depois.
No livro “Xing-Ling: Made in China”, o publicitário Victor Mascarenhas narra a história de uma Salvador futurista, dominada por chineses, onde o Pelourinho era acessível somente aos turistas e foi implantado, no cérebro dos moradores, um chip que os faziam acreditar viver na “Terra da Felicidade”. O chip era repleto de memórias falsas.
Muito se discute sobre a apropriação que a indústria do carnaval[2] realiza sobre o espaço público: atualmente, se eu quiser pedalar, perto da minha casa, em um dado momento precisarei descer da bicicleta, pois um camarote tomou um pedaço da ciclovia. E também uma praça, bem de uso comum do povo, segundo o Código Civil[3], já se tornou um camarote, alguns dias antes do início da festa.
Mas, o que me chama a atenção, e talvez tenha chamado a atenção do autor do livro “Xing Ling (…)”, é a apropriação que o carnaval tomou das nossas almas. Em Salvador, a alegria, geralmente, é sinônimo de conformidade.
Em uma dada passagem, diz o livro: “na verdade, essa padronização e espetacularização da tal ‘baianidade’ (…) começou (…) patrocinada por artistas, jornalistas, publicitários e pelo governo, (…) criando uma poderosa arma para manter as massas sob controle (…) mantidos anestesiados sob o jugo do status quo da felicidade” (p.15).
Marcelo Nova, na música “Controle Total”, já nos alertava, na década de 80: “levante/vá tomar café/ é hora de trabalhar/ e se quiser ligar o rádio, tem música feita pra lhe sedar/ ôooo, aqui em Salvador”.
O livro “Xing Ling: Made in China”, atenta para um fenômeno interessante: a substituição do Samba-Reggae, um ritmo politizado, de matriz negra, pela Axé Music (p. 68): devidamente repaginada, quase gourmet, canções leves, falando de amor e do Farol da Barra.
Não que o amor e o Farol não sejam bons. A questão é quando um estilo musical escolhe o lado cômodo da vida e isso é amplificado por grandes meios de comunicação, meios estes que, na Bahia, tem sobrenome e ligação política. Difícil seria imaginar um estilo musical, potencialmente crítico, na Bahia dos anos oitenta, ganhando projeção midiática.
Historiadores dizem que a expulsão definitiva dos portugueses da Colônia se deu com a independência da Bahia, no Dois de Julho, que já batizou o nosso Aeroporto.
A revolta dos Alfaiates e dos Malês são outros exemplos de momentos de tensionamento, em que o povo negro e oprimido buscou implementar suas reivindicações. E ambas foram barbaramente reprimidas.
Com isto, não podemos afirmar que o povo baiano, historicamente, mostra-se inerte ou indiferente às questões sociais cruciais: no documentário “A Noite Escura da Alma” (direção de Henrique Dantas, 2015), que trata sobre os anos da Ditadura Civil-Militar, chega-se à conclusão de que todos os órgãos da repressão nacional, em algum momento, por aqui estiveram. Ou seja: houve resistência.
Mas o filme começa e termina com imagens do carnaval, como que numa metáfora da alegria anestesiante e que nos torna indiferentes às contradições ao redor. Talvez, aquilo que Mascarenhas denomine como a “felicidade compulsória” (p.68).
Porém, o modelo engendrado na Bahia, aliado à sensação de indiscutível terra da alegria, este modelo que se espalha sobre as calçadas, ruas e os doze meses do ano[4], este modelo é um fato social[5] que, sob a batuta da axé, criou, nos últimos trinta anos, uma confortável sensação de conformidade, agradável como a brisa do Porto da Barra. Para o bem ou para o mal.
Referências
[1] Temos aqui, talvez, uma figura de linguagem, a metonímia: a “Bahia” é representada, no imaginário nacional, pela cultura da capital, especialmente a Axé Music, embora, mesmo durante o apogeu desse estilo, houvesse várias outras vertentes culturais, na capital e no interior. Segundo Derrida, as palavras, em regra, não expressam com exatidão o que se quer dizer. Substituir “Salvador” por “Bahia”, pode indicar a (histórica) centralização político-cultural do Estado. “Aos olhos de Derrida, um texto nunca está fechado em si mesmo, permanecendo essencialmente aberto à leitura do outro.”http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/derrida-e-a-linguagem/
[2] Theodor Adorno e Max Horkheimer apontam para a lógica mercadológica da “indústria cultural”, ou a aplicação da produção industrial aos bens culturais
[3] Art. 99. São bens públicos:I – os de uso comum do povo, tais como rios, mares, estradas, ruas e praças;
[4]Não se está aqui a reproduzir o senso comum preconceituoso, de que “na Bahia não se trabalha”. A realidade prova justamente o contrário. Sobre o tema, a tese O mito da preguiça baiana, defendida na Universidade de São Paulo (USP) em 1998 pela antropóloga Elisete Zanlorenzi.
[5] Fato Social, na visão de Émile Durkheim,” consistem em maneiras de agir, de pensar e de sentir, exteriores ao indivíduo, e que são dotadas de um poder de coerção em virtude dos quais esses fatos se impõem a ele”. As Regras do Método Sociológico, p. 03.
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Fonte: Caros Amigos.