Com uma mala vermelha e um tapete, o ‘livreiro do Alemão’ espalhou cultura pela comunidade

Escritor coloca a favela como fonte de inspiração e interlocução, transformando as linguagens locais em literatura

O amor de Otávio pela literatura começou aos 8 anos. Com um livro encontrado no lixão. Reprodução Arquivo Pessoal
Por Felipe Mascari.

“Salvo por um livro”, como se define o escritor Otávio Junior, conhecido como o “livreiro do Alemão, também “salva” pessoas por meio de suas obras. Seu último livro infantil, Da Minha Janela, de 2019, por exemplo, é capaz de transmitir empatia, criar senso observador nas crianças e levar representatividade para sua comunidade.

A alcunha de Otávio é referência ao projeto Ler É 10 – Leia Favela, que ele criou no Morro do Alemão, na zona norte do Rio de Janeiro. Responsável por estimular a literatura na favela, o escritor agradece a missão, capaz de criar outros olhares sobre a região. “Consigo levar o nome da comunidade às páginas de jornais de uma maneira leve e positiva. O Complexo do Alemão sempre foi colocado nas páginas policiais, então vou na contramão disso”, destaca.

Ator, produtor teatral e contador de histórias, Otávio Júnior conta que seu amor pela literatura começou cedo, logo aos 8 anos. Ao andar em volta do campinho de futebol do bairro, decidiu revirar um monte de lixo próximo e achou um livro: uma tradução da história espanhola Don Gatón.

O objeto inusitado naquele local chamou a atenção, conta. “Os brinquedos faziam parte da minha vida, mas os livros, não. No primeiro momento, a literatura foi uma ferramenta de entretenimento e, quando comecei a frequentar a biblioteca da escola, passei a ter mais contato com os livros”, lembra.

Após longo período, mas ainda jovem, Otávio decidiu transmitir à comunidade seu amor pela literatura. Pegou uma mala vermelha, encheu de livros, usou um tapete emprestado e saiu andando pelas favelas da região. Surgia o Projeto Itinerante, que oferecia “contação” de histórias, brincadeiras de adivinhação, performances literárias.

“Usava espaços de dança e esportes, montando bibliotecas, e sempre fui bem-vindo pelos educadores e pais. Então, foi quando resolvi abrir uma ‘barracoteca’, que era fixa, mas também visitava outros lugares”, conta.

‘Da Minha Janela’: escrito por Otávio e ilustrado pela argentina Vanina Starkoff, obra foi vencedora da categoria infantil do Prêmio Jabuti, em 2019 (Reprodução)
Os livros e o Alemão

A favela sempre foi a principal fonte de inspiração e interlocução de Otávio Junior. Em 2011, o escritor publicou seu primeiro trabalho, O Livreiro do Alemão, que narra sua trajetória. Em 2013, deu vida à obra O Garoto da Camisa Vermelha, que traz a história de Julinho, abordando questões como condições de moradia, infraestrutura e desigualdade social.

No ano seguinte, foi a fez de Otávio lançar O Chefão Lá do Morro, obra que mistura a pobreza, violência e medo com ingenuidade e esperança. “Ao mesmo tempo, eu mostro os problemas e também abro espaço para reflexão. As pessoas que vivem ali podem se conectar e se sentir representadas”, afirma, sobre a importância de abordar a periferia para além dos estigmas.

Seu último trabalho, Da Minha Janela, ilustrado pela argentina Vanina Starkoff, foi o vencedor da categoria infantil do Prêmio Jabuti, em 2019. Otávio diz que, ao transformar em literatura momentos reais da comunidade, a obra é um convite para os leitores conhecerem o múltiplo universo da favela.

Com o poder criar uma linha narrativa a partir da própria janela, Otávio acredita que mostrar aos leitores que, dentro de casa, há um portal grande de observação, seja sobre seu território ou sobre sua gente. “A partir dessa observação detalhada, você pode propor mudanças e transformações coletivas. O livro se conecta com uma magia de empoderar o leitor e colocá-lo como uma potência, para que o observador seja um agente propositivo.”

Transformação pela arte

A comunidade influencia no modo de olhar para o mundo e fixar raízes. Por isso, a universalidade da janela, de acordo com o autor, pode criar pontos de reflexão, independentemente da região. Ele lembra, por exemplo, de uma conversa com um morador de Porto Alegre, que se sentiu representado pelo livro.

“As pessoas que me mandam mensagens falam que a janela se tornou um ponto de conexão. O livro trata da favela, mas as pessoas conseguem criar seus próprios universos, através de suas próprias janelas. Recentemente, tive uma conversa com um jovem da favela de Porto Alegre e os relatos dele foram emocionantes. Ele começou a contar o que observava e pude ver a nacionalização e potência desse livro, que foi produzido na favela e reflete a favela”, comemora.

Decifrar os códigos e linguagens da periferia e reverter em literatura faz de Otávio Junior um contador de histórias capaz de experimentações em sua criação. Por meio do livro Da Minha Janela, ele acredita que é possível despertar a empatia no leitor.

“A literatura fez parte do meu desenvolvimento pessoal. A minha empatia nasceu quando comecei a compartilhar minha arte com as pessoas, tornando pública as minhas histórias. Eu sou grato à literatura por proporcionar isso e desenvolver minha empatia, podendo me colocar no lugar do outro, com outras histórias”, relata. “Eu, como autor, posso proporcionar ao outro um encantamento”, finaliza.

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