20 de setembro – o começo da saga dos farrapos


Por Elaine Tavares.

“Sirvam nossas façanhas de modelo a toda terra”.

No Rio Grande era assim. Todos os dias, na escola, antes de iniciarem as aulas, havia o ritual de hastear a bandeira. Primeiro era a do Brasil, com o hino nacional. Depois, a do Rio Grande, também acompanhada do hino gaúcho, uma espécie de ode aos farrapos (guerreiros da revolução farroupilha iniciada em 1835). E, naquela hora, a gente sempre era tomada de emoção, lembrando dos heróis. A revolução farroupilha é coisa viva em nós. Desde pequenos ouvimos as histórias, sentados na beira do fogo, em noites de inverno. Os feitos das gentes em lutas, do avô do avô e assim por diante. Para quem vive na fronteira com a Argentina e Uruguai, a coisa é ainda mais forte, e a guerra dos farrapos quase que nos determina. Nas pequenas cidades fronteiriças todos sabem quem foi maragato (farrapo), quem foi chimango (monarquista). E as divisões políticas iniciadas lá atrás persistem e ainda cindem famílias e amigos. Lá em casa éramos maragatos, do lenço colorado, farrapos. Por isso esse dia ainda tem poder sobre mim. E, quando ele chega, assomam as almas farrapas, a exigir que a luta continue, sempre e sempre, até que chegue, realmente, a liberdade.

O 20 de setembro marca um momento único na história do Brasil. Foi neste dia, em 1835, que um grupo de cavaleiros entrou em Porto Alegre, na então província de São Pedro, dando início a um dos mais longos conflitos já vividos em terras brasileiras: a guerra dos farrapos. Os cavaleiros vinham em busca de mercado para o charque e acabaram por embandeirar uma luta sem trégua por liberdade, fraternidade e justiça. A saga dos farrapos durou 10 anos e transformou a cara do Rio Grande.

Corria o ano de 1835, e a vida no sul do Brasil não era coisa fácil. Dez anos antes as gentes da fronteira haviam vivido a guerra da cisplatina, quando o Brasil enviara seus soldados para anexar as terras da Banda Oriental (hoje Uruguai). A guerra, como sempre, acabou semeando fome, miséria e trouxe grandes dificuldades para as famílias da região.  Os fazendeiros, donos das terras também amargavam prejuízos. O governo central, que acabara entregando o Uruguai,  exigia tributos demais, incitando a rebelião, e a proximidade daquela parte do país com as recém formadas repúblicas latino-americanas fazia nascerem idéias nas cabeças dos jovens soldados rio-grandenses, recém saídos do conflito contra os castelhanos. Muitos destes soldados eram também estancieiros e com a concorrência da Argentina e o Uruguai no mercado de carnes, queriam que o império garantisse o monopólio do charque para os gaúchos.

Essa conversa com as autoridades imperiais já se estendia por meses. Cartas, encontros, tentativas de negociação, debates da assembléia provincial. Como nada era feito, os fazendeiros começaram a conspirar nas casas de uns e de outros. Bento Gonçalves era o mais atrevido dos liberais. Soldado, havia lutado na guerra da Cisplatina e conhecia muito bem os ideais de Lavalleja e do Padre Caldas, dois gigantes na consolidação da república do Uruguai, que havia sido perdida pelo Brasil. Por conta disso Bento foi acusado pelo presidente da província de querer a separação do Rio Grande para ir se aquerenciar com o bando dos orientais. Todos estes ataques foram sedimentando a revolta.

Assim, por todo o Rio Grande foi-se preparando o início da guerra. A idéia era estourar revoltas em todas as regiões e, no dia 20 de setembro, invadir militarmente Porto Alegre, destituindo o presidente da província. As tropas seriam comandadas por Bento Gonçalves, Gomes Jardim, Onofre Pires e Manoel Viera da Rocha. E assim foi. Na noite de 19 de setembro, alguns guardas imperiais perceberam uma guarnição e houve troca de tiros. O presidente da província, Fernandes Braga, ainda tentou juntar gente para defender Porto Alegre, mas na tarde do dia 20 de setembro, apenas 19 homens haviam se apresentado. Boa parte da tropa se declarara em armas com os revolucionários. Não restou outra saída a não ser a fuga. Assim, quando Bento Gonçalves entrou na capital, não houve qualquer resistência.

Naquele dia, Bento Gonçalves e os demais estancieiros que planejaram a revolta, nada mais queriam que a nomeação de um novo presidente que atendesse aos seus apelos sobre a questão do charque e é esse o conteúdo da mensagem que mandam ao regente Diogo Antônio Feijó. Mas, o império contra ataca enviando o novo presidente acompanhado de um colossal aparato de guerra.  E é aí que o conflito começa de verdade. Bento Gonçalves é destituído de seu cargo de comandante da Guarda Nacional e passa a ser perseguido como um criminoso. Meses depois ele protagoniza um novo cerco a Porto Alegre que dura 1.283. Sem conseguir vencer, Bento centraliza o comando na cidade de Piratini. Por todo o Rio Grande também acontecem levantes, e aí já não é mais uma peleia de estancieiros pelo monopólio do charque. Os gaúchos de todas as partes começam a lutar por um país, um espaço autônomo, soberano, tal qual seus irmãos do Uruguai e da Argentina. Sonham com a abolição da escravatura, com a democracia, a república. A revolução farroupilha se reveste de desejos de liberdade.

E são estes sonhos e desejos nascidos das sangrentas batalhas que eram vencidas por gente comum, gaúchos tocados pela idéia de uma mudança radical, que provocam a proclamação da república rio-grandense, feita pelo valente general Antônio de Souza Neto, após a eletrizante vitória da batalha de Seival, em 11 de setembro de 1836. Horas depois do triunfo, chega tremulando a bandeira tricolor, feita às pressas na cidade de Bagé, e que passaria a representar a mais nova república das terras do sul.  Este é um momento de viragem na história do Rio Grande. É quando morre o ideal farroupilha (nascido das cabeças dos fazendeiros) e nasce a saga dos Farrapos, idéia forjada nos campos de batalha pelo povo em luta.

Depois disso, muitos são os combates pelo Rio Grande, afinal, o império não estava disposto a ceder. Numa das batalhas, Bento Gonçalves é preso e mandado para o Rio de Janeiro. Mas, nem isso esmorece a luta dos farrapos. Tanto que Bento é, inclusive, eleito presidente da nova república, mesmo estando longe. Os farrapos convocam uma Constituinte e começam a escrever a constituição. Em Porto Alegre eles têm dificuldades, mas pela pampa o lenço maragato impera. A luta avança para Santa Catarina, na cidade de Lages, onde encontram armas e apoio. Também encontram apoio efetivo do Uruguai, que garante a compra do charque.

Em setembro de 37, Bento Gonçalves escapa da prisão – já estava na Bahia – e volta para o Rio Grande, onde assume o seu posto de presidente. Naqueles dias praticamente todo o estado já estava na mão dos revolucionários. No ano seguinte, os farrapos conseguem entrar em Rio Pardo e abrem caminho para Porto Alegre, onde ainda estavam acantonados os imperiais. As batalhas eram constantes, e representavam o espírito de luta da gente do sul que entregava sua vida pela república rio-grandense.

Em 1838 os farrapos decidiram a abrir uma vereda para o mar, pois os imperiais mantinham o porto de Rio Grande. É aí que eles avançam para Laguna, em Santa Catarina, onde Garibaldi iria conhecer a jovem Anita e, com ela protagonizar uma das mais belas páginas da história catarina.  A saga de Garibaldi no rumo do mar também é coisa de folhetim. Seu grupo decide construir dois barcos em plena fazenda da irmã de Bento Gonçalves. Depois, os barcos são levados por terra, puxado por mais de 100 bois, até Tramandaí, numa odisséia que não encontra par na história. Dalí eles seguem por mar, também enfrentando tempestades e naufrágios até Laguna, aonde chegam, finalmente, em 22 de julho de 1839. A cidade é tomada pelos farroupilhas com o completo apoio da população, já contaminada pelos ideais de liberdade que emanavam do estado vizinho,  agora república. E, ali, os revolucionários proclamam o nascimento da República Juliana, outro estado livre e soberano, irmão do Rio Grande na busca de novos rumos. Mas, a república catarinense não demora a ruir sob a reação das tropas imperiais. E, em novembro, a cidade de Laguna é retomada.

Acossados pelos imperiais, os farrapos seguem no rumo de Lages, que já estava desde março sob o comando revolucionário. Mas, a derrota em Laguna abria um flanco para o avanço do exército imperial que, de combate em combate, foi ganhando terreno.  Sem uma saída para o mar, o governo republicano ficava capenga. Além do mais, começaram a surgir desavenças entre as lideranças dos farrapos, enfraquecendo a unidade da luta. Ainda assim, os combates seguiam e sacudiam todo o Rio Grande. Em 1842 finalmente é proclamada a nova Constituição da República, fato que dá novo ânimo às tropas farrapas. Havia agora uma certeza de que nada poderia barrar a liberdade da nova república. Também se aliam à causa rio-grandense líderes revolucionários que vinham de outras regiões, como os da Bahia, que tinham vivido a Sabinada e, os de São Paulo, saídos da revolução liberal.

Mas, a república rio-grandense, apesar de toda a bravura do povo gaúcho, não ficou imune às intrigas e brigas internas pelo poder. Quando veio o ano de 1843, com a constituição já em vigor, as rixas entre Bento Gonçalves e Antônio Vicente da Fontoura selam a derrocada de Bento e da própria república. No ano seguinte, em 1844, instigado por Fontoura – para quem não bastava que Bento Gonçalves já não estivesse mais na presidência – Onofre Pires, um dos grandes generais farroupilha, acusa Bento de ter assassinado um de seus companheiros. Bento o convoca para um duelo e, no confronto, Onofre é ferido, morrendo dias depois. Desde aí, algo se quebrava na jovem república e estava aberto o caminho para o fim.

Naqueles dias, comandava o exército imperial o conhecido general Lima e Silva, mais tarde chamado de Duque de Caxias. Disposto a enfraquecer os farrapos ele foi tomando pequenas cidades na fronteira com o Uruguai, para assim impedir a negociação com o charque, o que estrangulava quase que totalmente a economia gaúcha. Além disso, buscou para suas fileiras, um antigo aliado de Bento Gonçalves, o general Bento Manuel. Circulava pela região com mais de 12 mil homens, enquanto os farrapos dispunham de pouco mais de três mil. Todos esses fatores levaram o governo da república rio-grandense a negociar um acordo de paz. Mas, para o governo imperial havia uma questão da qual não abria mão: os escravos. E, na jovem república, estes já não mais existiam, pois, ao se alistarem no exército farrapo, os negros ganhavam automaticamente a liberdade. Isso retardou em mais de ano o armistício.

Foi só em março de 1845 que o tratado se fez. No acordo estava a garantia da anistia aos revoltosos, a libertação dos escravos e a escolha do novo presidente pelos farroupilhas. Ainda assim, muitos guerreiros farrapos se recusaram a aceitar a rendição. Um deles foi o heróico general Antônio Neto, que preferiu o exílio no Uruguai, junto com muitos de seus comandados.

A guerra que durou 10 anos e custou a vida de mais de 50 mil gaúchos terminou assim, de maneira melancólica, com uma triste rendição. Os estancieiros voltaram para suas terras, prisioneiros foram libertados,  e a liderança de Lima e Silva – o Duque de Caxias –  acabou por colocá-lo na presidência da novamente Província de São Pedro. Dali ele partiria logo depois para comandar as tropas brasileiras na Guerra do Prata, contra Oribe e Rosas, e, depois, a covarde guerra contra o Paraguai.

Ainda assim, a gente do Rio Grande não esquece seus heróis. As pessoas comuns, das cidades, dos cantões, até hoje relembram em canto e verso os dias de batalha, quando o povo inteiro empunhou a lança em nome da liberdade. A bandeira tricolor segue tremulando em cada cidade e o hino do Rio Grande, cantado em reverência, presentifica a valentia dos homens e mulheres que, com o lenço colorado no pescoço, ousaram viver livres. Foram apenas 10 anos, mas valeram para marcar o espírito de todo um povo.  E é por isso que todos os anos, no 20 de setembro, o Rio Grande pára e reverencia os bravos farrapos. Porque eles vivem, nos descampados, nos rios, nas lagoas, nos caminhos. Porque eles sopraram as brasas da liberdade num tempo distante e ainda agora apontam os caminhos para que os de hoje também possam sentar-se à mesa com essa velha e esquiva dama.

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