Somos um Estado laico de verdade, diz primeira senadora trans do Uruguai

Por Mauro Ramos.

Em entrevista exclusiva, Michelle Suárez comenta situação do Brasil: “cura gay é volta a período medieval”

Advogada e militante pela diversidade sexual, Michelle Suárez escreveu um capítulo importante da história do Uruguai ao se tornar a primeira senadora transexual do país e de todo o continente americano.

Acostumada a desbravar caminhos, em 2009, ela se tornou a primeira pessoa transexual do Uruguai a ter um diploma universitário. Hoje, ela usa o conhecimento jurídico para defender as causas da diversidade sexual em seu trabalho independente e como integrante do coletivo uruguaio Ovejas Negras.

Em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, Michelle, que pertence ao Partido Comunista do Uruguai, integrante da Frente Ampla, explicou as iniciativas que prevê para seu mandato. Durante a conversa, ela falou sobre os desafios para as lutas do movimento pela diversidade sexual no Uruguai e na América do Sul e sobre as ações necessárias para combater a chamada “cura gay”, tema que voltou à tona na conjuntura pós-golpe no Brasil.

Em relação ao avanço destas lutas no Uruguai, Michelle reconhece como elemento importante a articulação de diversas bandeiras de luta: “Passamos da reivindicação de uma agenda de direitos para a diversidade sexual para uma situação em que se falava sobre temas como a descriminalização do aborto, a pobreza, incluindo toda a agenda de direitos da diversidade sexual”.

Sobre estes avanços, e seu próprio feito histórico, Michelle ressalta que as conquistas não são “gratuitas” e manda uma mensagem de esperança para a militância brasileira: “Apesar de existirem momentos difíceis, de retrocessos e revisões dos avanços em termos de direitos, os direitos se constroem todos os dias; é preciso continuar e não jogar a toalha, porque depois dos momentos de tristeza, sempre nasce o sol”.

Confira a íntegra da entrevista:

Brasil de Fato: O avanço do movimento pela diversidade sexual no Uruguai vem sendo importante nos últimos anos. O que você destacaria como elementos que poderiam explicar essa ampliação e fortalecimento das lutas?

Michelle Suárez: Eu acredito que o Uruguai começou a desenvolver mecanismos próprios para se apropriar das ruas. O que se fazia nas primeiras marchas era, de certa forma, aproveitar as datas internacionais — tanto o 17 de maio, que é o Dia Internacional contra a Homofobia, quanto o 28 de junho, Dia Internacional do Orgulho Gay —, e reproduzir, no Uruguai, o movimento internacional. Isso realmente não teve bons resultados. Uma das coisas que era possível ver, principalmente no 28 de junho, é que era uma marcha em pleno inverno, com temperaturas baixas e clima inóspito; além disso, tinha uma reivindicação identitária.

Então, o que se decidiu foi passar da Marcha do Orgulho Gay para a Marcha da Diversidade Sexual, que é uma categoria muito mais inclusiva, porque não fala de uma orientação sexual específica, mas abre o leque para todas as orientações sexuais, todas as identidades.

A partir daí foi feita uma convocatória que não era exclusivamente do eixo diversidade sexual, e se tentou fazer com que estes atos fossem uma coordenação de organizações, em que outras organizações civis — que trabalhavam sobre outros eixos, fossem eles os movimentos negro e estudantil, o feminismo, o sindicalismo, etc — construíssem um discurso conjunto em que os eixos de trabalho fossem intercalados.

Então, passamos de uma reivindicação de uma agenda de direitos para a diversidade sexual a uma pauta onde se falava desde a descriminalização do aborto, a pobreza, até toda a agenda de direitos da diversidade sexual.

E se decidiu utilizar uma nova data, sem deixar de reconhecer o 28 de junho, porque é uma data internacional, mas colocando uma data nova para o Uruguai. Daí foi instalada, na última sexta-feira do mês de setembro, a Marcha da Diversidade. Com outro tipo de clima, em outro momento do ano, tornando mais fácil a participação de todo tipo de pessoas e famílias, porque além disso, a pauta tornou-se mais ampla. Virou uma mobilização massiva mais importante do país.

Você colocou como tarefa principal do seu mandato no Parlamento a aprovação de uma Lei Integral Transexual. Você poderia comentar alguns dos pontos principais deste projeto?

O projeto de lei atual é um projeto de ações afirmativas. É um conjunto de medidas coerentes destinadas a um grupo historicamente vulnerável, que é a população trans, concedendo benefícios especiais para superar os obstáculos que impediram o acesso igualitário ao gozo e proteção de direitos fundamentais.

O projeto em concreto visa distinguir pessoas trans que, pela idade, estado de saúde e sequelas da violência institucional, principalmente do governo de facto [ditadura uruguaia de 1973 a 1985], mas também dos primeiros anos da democracia, não conseguem ter chances de reinserção educativa ou no mercado de trabalho.

Propomos uma ajuda econômica, que eu chamo de “sobrevivência”, de um valor de 11 mil pesos uruguaios [cerca de R$ 1.200]. E, por outro lado, para quem tem chances de reinserção no mercado de trabalho e na educação, propomos uma cota para os concursos públicos de 1% destinada especificamente à população trans. Nos sistemas de bolsas de estudos, seriam destinados 2% do orçamento para a população trans. E, em relação ao direito à saúde, propomos que não só os prestadores públicos de saúde sejam os encarregados pelos tratamentos que envolvem a construção identitária trans, onde existem muitas mudanças físicas, como hormonização e tratamentos de redesignação de sexo.

Desde 2016, com o golpe aqui no Brasil, houve muitos retrocessos para a população em geral. A agenda conservadora tem avançado muito em detrimento das lutas da diversidade sexual, inclusive com a recente “cura gay” sendo autorizada pela Justiça. Por ser de um país vizinho, como você vê os acontecimentos no Brasil? 

Sempre é muito difícil falar da situação de um país onde não se vive. Mas essa proposta de terapias de reorientação sexual bate de frente com todos os parâmetros internacionais. Desde os anos 1970, a Organização Mundial da Saúde determinou que a homossexualidade não é uma doença, nem o lesbianismo. E, na verdade, existe um movimento internacional enorme para, justamente, despatologizar as chamadas identidades alternativas, e tudo aquilo que não pertença à heteronormatividade, ou seja, a esta situação de heterossexualidade obrigatória.

Atualmente, toda a ciência, inclusive a ciência médica, sabe que aquela cadeia, proposta como se fosse causal (quase como inquestionável), em que uma pessoa que nascia com uma genitália necessariamente desenvolvia um gênero e, necessariamente, a partir desse gênero, desenvolvia uma específica orientação sexual, é meramente contingente e não causal, já que uma pessoa pode ter genitais masculinos e não desenvolver um gênero masculino e sim um feminino.

Então, realmente, inclusive na medicina legal, questiona-se que o elemento do sexo, que era considerado cientificamente objetivo, possa ser definido, como único parâmetro, pelos genitais.

Porque, por exemplo, existe todo um movimento das pessoas interssexuais, que não possuem nem um pênis nem uma vagina, mas uma combinação de ambos em diferentes versões. Na verdade, o sexo, mesmo cientificamente, pode ser definido pelos genitais, cromossomos, hormônios e por fatores sociais, psicológicos e neurológicos. É preciso analisar cada um destes fatores para, no equilíbrio destes, poder determiná-lo. Portanto, o sexo tido como uma expressão da genitalidade é praticamente uma construção social, mais do que uma realidade científica.

O fato de que, diante de tudo isto, que é a corrente internacional, no Brasil seja proposto que é possível realizar terapias para curar a homossexualidade é como voltar praticamente ao período medieval.

Sinceramente, assusta isso do Brasil, cuja visão que nós, dos países mais próximos, temos é de um país bastante liberal e não tão conservador. Mas parece que existem ondas de retrocessos. Muitas vezes, quando começam a ser realizadas mudanças, principalmente na região, os sistemas reagem.

Há um desafio importante no Brasil em relação ao poder conservador, que começa a aparecer também no Uruguai, que tem a ver com a questão das bancadas religiosas. Como você vê isso, agora que está entrando no âmbito legislativo?

O Uruguai tem uma grande vantagem em relação a outros países latino-americanos, que é o fato de ser um Estado laico, mas no verdadeiro sentido da laicidade. Não só a Igreja é separada do Estado institucionalmente, mas a idiossincrasia do país leva a uma defesa irrestrita da laicidade.

Está certo que cada um tenha sua fé, sua crença, mas para isso existem templos e igrejas. Quando estamos no Congresso, o que se deve debater é o direito positivo, é a normativa para todos, e não para um grupo que possui uma moral específica.

Por último, que mensagem você mandaria para a militância da diversidade sexual aqui do Brasil neste contexto de retrocessos?

No Uruguai, quando eu tinha 15 anos (agora eu tenho 34, passaram-se 19 anos), era muito comum ouvir no rádio ou em qualquer mídia massiva, muito alegremente e sem que ninguém se alarmasse: ‘Tem que matar todos os putos’. E isso causava risos, não causava estupor em ninguém, ninguém levantava a voz para combater essas expressões, tão discriminatórias e destrutivas. Dezenove anos depois, todo mundo sabe que se alguém manifesta publicamente expressões desse tipo, não só haverá reações, mas é algo considerado politicamente incorreto.

Isto marca uma mudança de sensibilidade, e esta mudança e evolução da consciência coletiva fez com que hoje exista a primeira senadora trans do Uruguai. Uma mulher trans que é representante do Estado uruguaio no órgão mais representativo da democracia do nosso país. Então, isto, embora não signifique que o país não continue sendo um país discriminatório (é um país onde existe discriminação e onde é preciso trabalhar muito), significa que o trabalho árduo e sem pausa acaba dando seus frutos.

Chegar neste lugar não foi gratuito, houve um trabalho constante da sociedade civil durante décadas. E só agora estamos começando a ver os frutos. Então, o que eu lhes diria é que, apesar de existirem momentos difíceis, retrocessos e revisões dos avanços em termos de direitos, os direitos se constroem todos os dias, é preciso continuar e não jogar a toalha, porque depois dos momentos de tristeza, sempre nasce o sol.

Edição: Vanessa Martina Silva

Fonte: Brasil de Fato.

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