Contar a violência

Por Verónica Loss.

Tem uma quantidade de gente que me critica, e outra quantidade que diz não entender “como uma pessoa como tu se submeteu a tantos anos de um relacionamento abusivo?!”

Costumo dizer que não foram tantos anos…. que foram apenas 10 do total de 15 que duraram a relação (imagina, nem tantos!). Na verdade, digo isso pra me defender, pra não parecer que fui idiota por tanto tempo. Como se 10 anos fosse muito menos grave que 15 anos.

Buscando bem, lá nos primeiros meses já havia violência psicológica, anos antes da primeira violência física. Só que eu achava que tava certo, que era assim mesmo. Afinal, a maioria dos maridos, companheiros, namorados das mulheres que eu conhecia eram meio estranhos, meio grosseirões. Dentre as muitas primas que convivia, os poucos primos também eram pessoas de cara amarrada, de difícil acesso pra mim, e que até me davam certo medo.  Enfim, homem era assim mesmo. Eu nunca convivi com homem, fui criada por duas mães adotivas (tia e avó). Tinha um tio que ia lá na casa da vó, onde cresci, pelo menos uma vez por semana. Ele levava leite, e outras coisas de comer, até alguns doces. Mas sempre me olhava com cara feia, esperava a queixa que a vó ia fazer de mim, e me passava alguma reprimenda, com muita grosseria. Quando ele chegava, antes que entrasse em casa eu já ficava angustiada, com vontade de sumir.

Pois quando esse relacionamento começou eu já tinha na bagagem duas separações e dois filhos. Segundo a minha família, uma verdadeira fracassada. Então eu que tratasse de ser agradecida por deus ter me mandado mais essa oportunidade de ter uma família decente, um homem que me cuidasse, que me protegesse. Homem bom não se encontra em qualquer esquina não! E se ele fica irritado, é tu que tá fazendo alguma coisa errada. Tu não vê que quem não presta é tu? Tu não tem competência nem pra manter um homem do teu lado… E por aí vai.

O primeiro golpe físico…

Não deixou marca física. Um tremendo susto, tristeza, vontade de colocar a cabeça num buraco e nunca mais ver ninguém. Em seguida mil desculpas, yo no soy de hacer esas cosas, fuiste vos que me desencajaste con ese tonito de voz irónico… por favor mi amor, no me hables más de esa forma… ¡vos conseguís sacar lo peor que hay en mí! Convenceu, a culpa foi minha.

Depois disso foram vários meses de muito carinho, muita sedução. Até que um dia decidi sair da cidade que eu havia escolhido pra viver, onde tinha amigos e um grupo de contenção, onde estava relativamente perto da minha família, pra um lugar a 1500km de distância: a cidade em que ele nasceu, onde todos na volta eram parentes dele, conhecidos e amigos dele, onde eu não falava e pouco entendia o idioma. Aí veio o segundo golpe físico…

De novo a culpa era minha, claro. E eu ali, naquele mato sem cachorro, tinha que reverter a situação. Que poderia fazer para que esse homem não ficasse tão irritado? Ele é bom, “cuida” (leia-se “tolera mal e porcamente”) os meus filhos que nem são dele.

No terceiro golpe eu estava grávida – eu que pensava que se tivesse um filho dele ia ser mais respeitada, que ele jamais faria isso com um filho dele entre nós!

E depois do parto se foram todos os escrúpulos, e as ameaças, gritos e golpes foram tão seguidos que perdi a conta. Preciso ir embora desse fim de mundo! Preciso tirar os meus filhos daqui! Vou pro norte, pra perto da minha gente!

Um dia ele viaja ao norte, que lindo lugar, vamos morar allá mi querida! Vamos salir de esa mierda, es este pozo negro que es esta ciudad que me deja loco, nervioso. Vamos todos para allá, va ser mucho mejor. E com o  que consegui guardar das minhas economias comprei um terreno, pra lá fomos, eu cheia de esperança de ter comprado passagem pro paraíso. Só que não.

E quando eu já tava bem de saco cheio, com a água chegando no pescoço, cheia de coragem e decisão, pronta pra me separar, o cara fica doente. Doença braba, médico, exames, cirurgia na capital, tratamento pra toda a vida. Restrições, dieta balanceada, não pode fazer força, não pode trabalhar… antes já trabalhava pouco ou nada, agora é que nada mesmo. Vou deixar esse pobre velho na mão, abandonado, passando fome? Después de todo lo que hice por ti y por tus hijos? Todo lo que yo aguanté de ustedes! Yo sabía! Yo sabía que tu plan era desecharme como si yo fuera una basura, ahora que no te sirvo más, que no soy más útil.” Depois de me separar, onde meto a minha culpa?

Capaz que tô condenada a essa vida. O cara tá doente. Vou separar mais um filho do seu pai? Ainda mais um pai doente.. Até a minha filha diz que só não denuncia porque não quer que o irmãozinho se crie sem pai, assim como aconteceu com ela. Sim, é esse o meu inferno em vida, é baixar a cabeça e aguentar, pelo menos uns 10 anos mais até que o pequeninho fique grande, 10 anos mais?! Sim, até ficar velha, toda cheia de rugas, doente, neurótica.

Nunca contei a ninguém…

Nunca. Nunca nada! Nada nunca, jamais! Imagina… que vergonha… Uma pessoa como eu, uma profissional. Uma pessoa que vive de dar conselhos, de melhorar a vida dos outros, que trabalha pela saúde. Contar é admitir que sou uma fracassada, que não consegui resolver, sair disso. Que vergonha.

Até o dia que contei. Para um amigo e uma amiga. Para os dois ao mesmo tempo. Parece que foi surpresa para os dois. E por incrível que pareça, não me encontrei com a famosa sororidade. E é aí que me deparo com um tipo de machismo muito triste, aquele que parte de outra mulher.

Mas gratamente o amigo reagiu de outra forma. Olhando de fora isso poderia causar surpresa, porque foi dele a reação que se esperaria da amiga. Mas quem o conhece sabe que ele é uma pessoa que supera o fato de ser homem.

“Por eso dejé, no es mi elección. Los machos son deleznables. Por eso prefiero no saberme así: macho man”. Escreveria ele, o amigo poeta escritor, no seu último livro.

Foi ele quem me contou que existia um serviço público que cuidava de questões de violência de gênero, onde eu teria toda ajuda que precisasse. E desde o dia em que soube disso até o dia em que me animei a denunciar se passaram 3 anos… E ele atento e disponível, eu sabia que quando eu precisasse, estaria ali. Às vezes, sem ser invasivo, perguntava: ¿cómo están las cosas? Bem, respondia eu, tentando ser convincente.

Chegou o dia…

De sentir todos os sentimentos desencontrados e simultâneos. O mais forte: medo. Medo de que ele cumprisse as promessas (si me denuncias mando a ti y al niño al lagunón; echo nafta y prendo fuego en todo eso; si no venis a la hora de siempre cuando llegues no encontrarás más ni a mí ni al niño…). Medo por saber que a maioria das mulheres que são mortas por violência doméstica o são depois que abandonam o companheiro maltratador. Medo de ele lastimar não só ‘a mim mas a outras pessoas queridas. De estar na minha casa, de ir, de vir.

Disse uma amiga espírita: “há duas coisas que um espírita não carrega muito tempo consigo: sentir-se vítima e sentir medo”. Sempre simpatizei com o espiritismo, não vou mais ser vítima, não vou mais ter medo!

E fui ao serviço que cuida de assuntos de violência de gênero.

Lá fui acolhida, abraçada, cuidada e consolada por mulheres. Advogada, assistente social, psicóloga. Lá fui escutada e auxiliada. Levada a fazer as denúncias, acompanhada, agasalhada. Por um serviço que é público e nunca tive nem terei que pagar nada por isso.

Infelizmente até hoje, depois de tanto tempo, ainda sou usuária do serviço de violência de gênero. Infelizmente é necessário, porque meu ex   companheiro continua sendo uma ameaça à minha segurança e talvez à minha vida. Mas felizmente este serviço continua existindo, e está à minha disposição.

Felizmente tenho amigas, amigos e cada vez mais pessoas que ajudam a cuidar-me. Principalmente mulheres lindas que militam pela liberdade e segurança de todas nós que corremos perigo só pelo fato de sermos mulheres em essa sociedade machista e patriarcal. Companheiras estas que estão em Rivera, ao meu lado, e tantas outras por aí neste mundo afora.  E felizmente deixei de me importar com o julgamento das pessoas, e hoje conto a minha história para que mais e mais mulheres que sofrem violência se animem a contar, a pedir ajuda, a deixar de lado o constrangimento,  a vergonha e o medo.

Por sorte tenho filhos lindos que me apoiam. E o pequeno, mesmo com toda a adversidade, se desenvolve como um menino saudável, alegre e inteligente.

E aquele amigo, escritor poeta, aquele que supera a condição de ser homem, que tão respeitosamente e pacientemente esteve atento, amigo, companheiro amoroso, continua ao meu lado, mas agora muito mais perto. E foi ele que me fez desistir da ideia de desistir. Que me mostrou que o meu velho sonho de amor e liberdade pode e deve ser possível.

Fonte: De Rivera.

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